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Foto do escritorAndrei R.

[XVII Fantaspoa] Assim na Terra, Como no Céu e o problema da grandiosidade

Atualizado: 13 de abr. de 2021



Um mistério que remonta à Itália medieval é tema de Come in Cielo, Così in Terra (Assim na Terra, Como no Céu), filme independente que marca a estreia do diretor italiano Francesco Erba, lançado em 2020. Acompanhamos quatro linhas de tempo diferentes, mas que estão interligadas por acontecimentos macabros.


No ano de 1275, uma jovem é presa por num mosteiro por monges que pretendem utilizá-la para fins não muito religiosos. Lá, ela conhece e se aproxima cada vez mais do monge encarregado de copiar manuscritos. Intrigado com a presença da mulher, que passa a engravidar com frequência, mas que sempre tem seus bebês confiscados e mortos, o monge começa a investigar seus colegas e percebe uma estranha relação entre estes acontecimentos e os experimentos realizados por um alquimista que vive junto aos monges. Séculos depois, em 2011, dois jovens desaparecem depois de entrarem no mosteiro, agora já abandonado, deixando para trás apenas as gravações realizadas por eles — e que são encontradas pela polícia. Já em 2013, um dos investigadores do caso contrata um cinegrafista para gravar seu depoimento e para ficar com a posse dos documentos dessa investigação, pois o policial teme por sua vida. E por fim, três anos depois, o cinegrafista dá continuidade ao trabalho que lhe foi passado.


Portanto, um adjetivo que descreve muito bem Assim na Terra, Como no Céu é “ambicioso”. Em uma hora e trinta e dois minutos de duração, o filme nos leva por quatro momentos temporais diferentes, através dos quais somos convidados a montar esse quebra-cabeça macabro e, para isso, o filme emprega diversos recursos cinematográficos. Nas cenas que se passam no período medieval, é utilizada a técnica do stop motion, e não há nenhum diálogo. Já nas cenas de 2011, 2013 e 2016, acompanhamos os últimos momentos dos jovens no mosteiro, o vídeo-testamento do policial e as investigações do cinegrafista através de gravações feitas por esses personagens e por câmeras de segurança. Ou seja, a história do filme é contada, ao mesmo tempo, com duas linguagens cinematográficas bem diferentes entre si, saltando de forma um tanto quanto inusitada do stop motion ao found footage.



Ao começar o filme, essa mistura pode parecer um charme, uma característica peculiar. Entretanto, conforme se entra em contato com a história, torna-se perceptível os problemas que ela traz. É como se estivéssemos assistindo a filmes diferentes. Quando as cenas de found footage começam a criar uma tensão, o filme corta para a linha do tempo medieval, que tem uma aura completamente diferente — o mesmo acontece ao contrário. Quando os acontecimentos começam a ficar assustadores, ou no mínimo fazem o espectador ficar esperando por algo, quase sempre a tensão é cortada pela mudança de foco. Assim, pode ser muito difícil se conectar totalmente com aquilo que se está vendo.


A diferença de qualidade em todos os aspectos, desde o roteiro até a ambientação, também é nitidamente visível em ambas as partes. Enquanto que o stop motion mostra um trabalho fenomenal por parte da produção, com bonecos bem detalhados e esteticamente impecáveis e uma ambientação igualmente bem feita, as cenas “no mundo real” são um pouco inferiores. Apesar de alguns momentos apresentarem um uso criativo das ferramentas que o found footage dá, com cenas bem filmadas e tensas, uma parte considerável apresenta um roteiro fraco, escolhas duvidosas e até inconsistência da linguagem. A título de exemplo: numa das cenas em que o jovem casal está chegando na abadia, vemos isso através da câmera do celular de um deles. Entretanto, em momentos completamente aleatórios e sem nenhum motivo narrativo, o estilo found footage é cortado para pequenos frames em terceira pessoa, mostrando os personagens andando e o ambiente ao redor. Somado o uso da trilha sonora nessa cena, parece que estamos vendo um grande trailer no meio do filme. Toda a tensão de não saber o que está por vir, de acompanhar a visão dos personagens, se perde.



Apesar disso, a narrativa consegue ser criativa e interessante. O mistério do mosteiro e os bebês é bem construído, apesar das partes mais tensas e bem trabalhadas acontecerem justamente na linha do tempo medieval. Nas cenas em épocas recentes, a tensão se perde um pouco, com alguns detalhes que são deixados de lado, mal explicados ou resolvidos de forma muito fácil. Esses problemas, como já dito, não fazem com que o filme seja necessariamente ruim — se não se levasse tão a sério, a experiência talvez fosse muito melhor aproveitada, porque a história e a forma como ela é contada oferecem um prato cheio para algo mais despretensioso, que abrace suas bizarrices com maior consciência, já que temos monges medievais, alquimistas, Jesus Cristo, investigação policial, found footage e stop motion numa mesma obra. Entretanto, na sede pela seriedade, o roteiro criou problemas que minam esse objetivo e alguns espectadores podem encontrar dificuldade em ignorar.


Assim na Terra, Como no Céu pode ser visto como uma história de séculos de sofrimento e terror causado pela falta de escrúpulos daqueles que supostamente buscam a santidade. E apesar de discutir isso através de uma ideia interessante e construída de forma razoável, diversas escolhas narrativas que pretendiam seriedade e grandiosidade, acabaram por produzir uma obra inconstante, que não usa totalmente seus elementos inusitados a favor da experiência — até entrega alguns momentos incríveis, porém, eles não se mantêm por muito tempo. Mesmo assim, é cativante e não necessariamente vai gerar a vontade de desistir no meio dele, já que o mistério pode instigar a curiosidade de saber até onde essa história vai nos levar.


Assim na Terra, Como no Céu e muitos outros filmes fazem parte do XVII Fantaspoa, totalmente online e gratuito, disponível na plataforma Wurlak.


COME IN CIELO, COSÌ IN TERRA

Itália | 2020 | 93 minutos

Direção: Francesco Erba

Roteiro: Francesco Erba

Elenco: Eva Basteiro-Bertoli, Ania Rizzi Bogdan, Federico Cesari, Danielle Di Matteo, Philippe Guastella



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