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Foto do escritorYuri Cesar Lima Correa

[Ossos do Ofício] Top Gun: Maverick é um epitáfio ao ideal masculinista



São os [Ossos do Ofício] de todo esqueleto manter-se atualizade com as produções que estão rolando fora do meio queer e do horror. É nesta coluna que daremos a elas a honra de serem comentadas no nosso espaço.

 

No futuro, como iremos explicar para nosses filhes produzides in vitro, panssexuais e não-bináries o que sequer é um heterossexual cisnormativo? Pior do que isso, como traduzir a paixão militarista que leva um grupo de jovens a uma missão praticamente suicida em nome da “soberania de seu país” (leia-se: em nome dos interesses políticos de velhos milionários)? Esses valores podiam estar muito bem difundidos em 1986, quando estreou o primeiro Top Gun, mas hoje, 36 anos e um Twitter depois, Top Gun: Maverick (2022) se vê obrigado a reconhecer que esse tempo já passou. E tal qual um fantasma dos natais passados, Ed Harris, ator marcado por sua persona de homem frio e calculista, aparece numa pontinha para lembrar Maverick (Tom Cruise): “você é uma espécie em extinção”. Exato, os anos 1980 acabaram, Margaret Thatcher e Ronald Reagan morreram, os pilotos de aviões-caça logo serão substituídos por drones controlados de forma remota e o ideal militar e estadunidense cabe mais na figura de um vilão, do que de um herói. E mesmo reconhecendo isso, essa continuação tardia ousa reviver princípios defasados, já impressos na abertura em cores quentes que emula a direção do saudoso Tony Scott, e se apresenta como uma carta de despedida, uma última voltinha no aviãozinho do ideal masculino, um epitáfio à cis-heterossexualidade masculinista.



Não, eu não creio que essa tenha sido a intenção dos realizadores. Diferente da rebeldia queer de Matrix: Resurrections, por exemplo, o saudosismo melancólico que permeia Top Gun: Maverick me parece menos planejado e mais consequencial, pois nasce do choque de revisitar esses personagens três décadas depois — como reencontrar um amigo querido da juventude que não mudou em nada seu jeito de pensar. O diretor Joseph Kosinski, que já tinha trabalhado com Tom Cruise em Oblivion (2013), é reverente ao ícone que o personagem título tornou-se na cultura popular (cis-hétero), com seus óculos Ray-Ban, a jaqueta de couro e a motocicleta. Ao mesmo tempo, porém, o roteiro oferece poucas chances de redenção a Maverick, que não cansa de ouvir de outros personagens: "essa é a sua última aventura". Sentença contra a qual o protagonista jamais se rebela; pelo contrário, aquiesce, aceita. É esse sentimento de resignação, tendo sido ele premeditado ou não, que confere uma aura de dignidade ao projeto, devidamente pontuada pela materialidade das impressionantes e grandiosas cenas de ação, realizadas com muitas acrobacias e pouco ou nenhum auxílio de computação gráfica — o que não é surpresa alguma num filme protagonizado e produzido por Tom Cruise.


E se a obsessão pela execução in loco tem engrandecido os capítulos mais recentes da franquia Missão: Impossível, aqui essa fisicalidade é elevada a um expoente absurdo, pois é conjurada por aeronaves de verdade, fazendo manobras arriscadas de verdade, com os atores estando dentro delas… de verdade. O resultado é nada senão impressionante, tanto que precisei conferir vídeos de bastidores para conseguir acreditar que as cenas tinham sido realmente gravadas com aviões reais — e com o elenco dentro deles. Um feito, sem dúvidas, e igualmente uma masturbação técnica que ressoa com a natureza tecnocrata da instituição militar, centro da narrativa. Numa tecnocracia, presa-se a perícia, não o valor humano, e é isso que a ação do filme nos traduz, conseguindo ainda assim, evitar a frieza da lógica militarista aqui e ali; e em certo momento, o almirante interpretado por Jon Hamm (hmmmmmm, Jon Hamm) lista os objetivos da missão em torno da qual gira a trama, mas se esquece de um item importante, acrescentado por Maverick: “trazer nossos pilotos de volta para casa”. Salvos pelo gongo? Não, mas justamente pela breguice oitentista que o filme faz questão de ressuscitar, atropelando qualquer possibilidade de fazer deste um Top Gun segundo Christopher Nolan.



Aliás, nem chega perto disso, pois os personagens de Maverick são quase irracionalmente passionais. Há, acima de tudo, tesão naquilo que fazem. É como se os aviões fossem extensões de seus corpos, rugindo, dançando e roçando as coxas de metal no meio do céu. Logo, os conflitos que surgem entre os pilotos são carregados de tensão sexual. Não é novidade para ninguém o tanto de homoerotismo contido no filme de 1986, mas aqui isso vai um pouco mais além. Nessa vontade de recuperar um pouco da estética e valores oitentistas, essa continuação acaba ressaltando alguns dos aspectos mais contraditórios da heterossexualidade enquanto sistema hierárquico; são homens que se atraem e transam com mulheres, mas cujos dramas giram em torno do relacionamento com outros homens — de modo que nem mesmo eles passariam no teste de Bechdel. E isso aparece não só na constante disputa juvenil para ver quem será o piloto de ataque e quem será o wingman (uma clara metáfora boba sobre quem é o ativo e quem é o passivo da relação — o que por si só já revela muito sobre a lógica heterossexual), mas também nas motivações do protagonista, que toma suas decisões buscando o perdão de um dos seus pupilos, filho do amigo que ele perdeu (36 anos depois, ainda há fotos de Goose nas paredes da sua oficina). Enquanto isso, o jovem Rooster (Miles Teller) é motivado pelo antagonismo de Jake (Glen Powell), que por sua vez exibe grande desdém pela presença das únicas pilotos mulheres na equipe. E para lidar com essa situação e treinar esses milicos, Maverick precisa enfrentar e conquistar a afeição do almirante Simpson (Hamm), outro homem!



De modo que, quando o roteiro introduz o romance entre Maverick e Penny (Jennifer Connelly), o negócio soa exatamente como aquilo que é: um acessório. Uma etiqueta que, contra todas as evidências, atesta a heterossexualidade do personagem. E não, para mim isso não é um problema, pois jamais poderia condenar um filme por algo que ele faz tão honestamente. E há uma sinceridade na forma com que o projeto se assume, digamos assim, heterossexual raiz. Quase uma inocência, ausente de cinismos ou pedidos de desculpas. Na superfície, é um produto que representa em tema tudo aquilo que repudio, mas como criatura, definhando e dando seus últimos grunhidos, é algo que não consigo deixar de admirar. Outrora predador altivo, agora peça de museu. Top Gun: Maverick é ultrapassado, mas orgulhoso disso. Sabe que está morrendo, e sobe na prancha voluntariamente. A última cavalgada em direção ao pôr-do-sol — bom, nesse caso, o último voo. Sei lá, desde os cowboys que os macho-man têm essa obsessão de enfiar o poente no final da história. Mas eu consigo respeitar (e me divertir) com isso. Quando o último dos heterossexuais cair, eu espero que seja com um espetáculo tão grandioso quanto este aqui.

 

TOP GUN: MAVERICK

EUA | 2022 | 131 min

Direção: Joseph Kosinski

Roteiro: Ehren Kruger, Eric Warren Singler, Christopher McQuarrie

Elenco: Tom Cruise, Miles Teller, Glen Powell, Jennifer Connelly, Val Kilmer, Ed Harris, Jon Hamm, Monica Barbaro

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