[Livro] Patricia Highsmith fala de sua paixão em Os Gatos
Atualizado: 1 de out. de 2022
"(...) acho que as mentes dos escritores são ativas ou perturbadas o suficiente para precisarem da aura calmante de um gato em casa."
19 de janeiro de 2021 marca o centenário do nascimento de uma das escritoras de literatura de gênero mais fascinantes e polêmicas do século passado. Nascida em 19 de janeiro de 1921 no Texas, lésbica, amante dos animais, dos livros de Dostoievski e de Edgar Allan Poe, Patricia Highsmith deixou a sua marca na literatura policial. Seu primeiro livro, Pacto Sinistro (Strangers on a Train), já causou tamanho impacto no seu lançamento, que no ano seguinte já estava sendo adaptado para o cinema pelo Hitchcock com roteiro do Raymond Chandler. Já de cara o seu livro sobre dois estranhos que fazem um plano para matar seus desafetos trouxe elementos que seriam recorrentes em sua obra: homoerotismo, obsessões, um senso de humor diabólico e uma estrutura que fugia do romance policial tradicional. Seu segundo livro, Carol (escrito com o pseudônimo Claire Morgan), ainda hoje é lembrado como o primeiro livro lésbico a ter um final feliz e a autora disse que décadas depois ainda recebia cartas de leitores agradecendo a ela por ter escrito o livro. Os dois livros de estréia imensamente bem sucedidos foram um presságio para o que viria.
Ao longo da sua prolífica carreira ela criou uma série de narradores imorais, psicopatas e atormentados que levavam o leitor para recantos sombrios mas estranhamente fáceis de se identificar sendo o mais famoso deles o farsante Tom Ripley, personagem presente em cinco livros da autora. Existe algo deliciosamente amoral em ler os livros com personagens horríveis mas com desejos e obsessões tão fáceis de se relacionar: o desejo de poder trocar de lugar com outra pessoa, de adentrar a vida de outrem, de ser especial, de manter algumas pessoas sempre por perto, de esquecer para sempre o passado, etc. Como disse Carmen Maria Machado em seu texto sobre o centenário da autora: “(...) você não procura Patricia Highsmith para bondade, luz ou conforto. Você a procura para inquietantes observações sobre a depravação humana; você a procura porque esqueceu o azedo gosto do medo.”
Patricia Highsmith em si era uma pessoa um bocado espinhosa. Nas palavras da sua biografa Joan Schenkar: “Ela não era legal. Raramente era educada. E ninguém que a conhecia diria que era uma mulher generosa”. Extremamente antissocial, Highsmith se auto-isolava e não fazia questão de esconder que preferia a companhia dos animais e que pessoas raramente se encaixavam na sua rotina. Também é sabido que ela possuía opiniões terrivelmente racistas e antissemitas, além de ter o maldoso hábito de colocar personagens nos seus livros com características das suas ex-namoradas unicamente para dar destinos horríveis a elas. Qualquer tentativa de tentar redimir Highsmith de suas falhas é uma atitude que provavelmente a própria reprovaria. Como disse Carmen, ela era horrível com as pessoas e também consigo mesma.
Mesmo sendo quem era, Patricia Highsmith parecia causar um fascínio semelhante ao que seus personagens causam no leitor. Seu funeral foi televisionado e extremamente disputado na época, é impossível pensar na literatura policial hoje sem ver os ecos da sua obra. Não consigo imaginar um mundo com livros como Garota Exemplar, História Secreta e Psicopata Americano sem Highsmith. É difícil escapar da sua sombra assim como é difícil não ficar fascinado com a sua obra apesar de tudo.
Nesta data, me pareceu interessante falar sobre um dos trabalhos da autora em que ela fala sobre uma das poucas coisas que ela amava: os gatos. O livro Os Gatos, publicado pela L&PMpocket com tradução de Petrucia Finkler, é um pequeno livro onde Highsmith faz uma homenagem aos seus queridos felinos a sua maneira, às vezes fofo e outras vezes mórbido.
O livro é composto por sete desenhos da autora, três contos, três poemas e um ensaio onde ela fala do seu amor pelos gatos. Os três poemas falam sobre as três fases da vida de um gato e o ensaio é uma espiada interessante não só na relação da autora com seus gatos, mas também na sua rotina. Nas palavras da mesma: “Os gatos oferecem para o escritor algo que outros humanos não conseguem: companhia que não é exigente nem intrometida, que é tão tranquila e em constante transformação quanto um mar plácido que mal se move.” Além de serem, segundo ela, verdadeiras obras de arte que se movem.
Apesar de serem interessantes, os três contos são sem dúvidas o grande atrativo do livro. Nessas narrativas curtas é possível perceber o senso de humor cruel da autora (aqui em quantidade bastante atenuada, mas ainda sim visível) assim como o sua visão sobre justiça (algo que ela dizia ser desinteressante na literatura) e a forma como ela lida com os traumas de seus personagens. Em Presentinho de Gato já podemos ver o senso de humor da autora na situação inicial: um grupo de conhecidos está jogando palavras cruzadas na sala de estar quando escutam o barulho do gato entrando pela portinhola. Quando vão fazer carinho nele e ver qual presentinho ele trouxe o resultado deixa todos horrorizados: não é uma pomba e nem um camundongo, mas sim dedos humanos. A investigação e o desenrolar da história irá dar a paisagem bucólica do interior da Inglaterra e aos seus habitantes ares de morbidez além de mostrar como “pessoas respeitáveis" podem também ter um senso de justiça um bocado distorcido.
A Maior Presa de Ming é o conto que tem o felino de forma mais presente, afinal, a história é narrada por um. Nesta história super simples nós acompanhamos Ming, uma gata que ama a sua dona mas que tem um profundo desprezo pelo namorado dela. Após um dia este tentar de forma mal-sucedida se livrar dela, Ming decide que é hora de dar um fim nele. Mais até do que os poemas e o ensaio, este conto parece a homenagem definitiva da autora para os felinos por ser algo completamente dentro dos padrões da sua obra. Menos focada em criar suspense, aqui nós vemos o dia a dia da gata Ming que é tratada pela autora como tendo uma certa superioridade em relação aos personagens humanos e ainda dar a protagonista o sabor de se vingar de um humano que a maltratava num final com uma certa pitada diabólica de humor.
O último conto talvez seja o meu favorito da coletânea. A Casa de Passarinhos Vazia acompanha um casal que começa a achar que tem alguma pequena criatura vivendo na sua casa. Ficando cada vez mais desesperados eles decidem pegar uma gata emprestada de um casal de amigos para ver se ela consegue caçar este animal que eles são incapazes de identificar. O único conto dos três a ter algum tipo de elemento sobrenatural e o que tem menos presença do gato é também o que mais me deixou instigado. O estranho animal na casa começa a fazer o casal-saído-de-propaganda-de-margarina questionar a própria sanidade e isso ressuscita alguns momentos sombrios do seu passado que eles queriam fingir que nunca aconteceu. O jeito com que a autora lida com essa imagem de um casal que por trás da sua fachada possuí traumas que será obrigados a confrontar pelo resto da vida por mais de que tentem esquecer é algo que, por mais que não seja necessariamente original, tem uma força tremenda.
Um livro super curtinho que irá agradar tanto os fãs já antigos da autora quanto os que querem conhecer o trabalho dela. Ainda que não seja uma obra-prima é uma pequena e deliciosa amostra dessa escritora tão cheia de farpas e tão ácida na hora de nós expor aos nossos pensamentos e desejos sombrios.
OS GATOS
2011 | 128 páginas
Autor: Patricia Highsmith
Tradutor: Petrucia Finkler
Editora: L&PMpocket
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