[Crítica] ParaNorman: Quem tem medo da criança queer?
Atualizado: 17 de fev. de 2021
A Laika é, na minha opinião, uma das produtoras mais interessantes em atividade. Não só porque eles fizeram o seu nome em cima de filmes de terror para crianças, mas também pela sua marca registrada: o fato de todas as suas animações serem em Stop Motion, uma técnica ABSURDAMENTE trabalhosa e que gera um resultado único. Acredito que todos que já tenham visto Coraline (2009) ou Kubo e as Cordas Mágicas (2016) tenham ficado impressionados com a forma como eles criam imagens realmente muito macabras, mesmo que ainda dentro dos limites de um filme de censura 12 anos. Todo o esforço e talento empregados nesses filmes não passa despercebido, até o presente momento todos os filmes da produtora foram indicados ao Oscar de Melhor Animação.
Coraline continua sendo o meu filme favorito da produtora, mas hoje vamos falar sobre outra obra que não fica muito atrás: ParaNorman. Dirigido por Sam Fell e Chris Butler (este sendo o primeiro trabalho de Chris na direção) e lançado em 2012, o filme foi o segundo lançamento da produtora, nele nós acompanhamos Norman, um garoto que mora numa cidade que capitaliza o máximo que pode em cima de um acontecimento histórico famoso: o julgamento e execução de uma bruxa que teria vivido ali séculos atrás. Norman não é uma criança popular, é fã de filmes de terror e tem o peculiar dom de conseguir ver e falar com gente morta. Ele passa suas tardes vendo filmes de horror toscos e conversando com o fantasma da sua avó, algo que preocupa os pais e o torna alvo de deboche da sua irmã mais velha e de outros moradores da cidade. Um dia, porém, ele começa a ter estranhas visões relacionadas ao fatídico julgamento da bruxa. A coisa só piora quando um tio seu com o mesmo dom morre e o seu fantasma aparece para Norman dizendo que só ele pode fazer com que a maldição que a bruxa jogou na cidade permaneça adormecida por mais um ano.
As coisas porém não correm como o planejado e Norman, seus amigos e a sua irmã tem que fugir dos zumbis que forma amaldiçoados pela bruxa e impedir que a sua fúria destrua toda a cidade.
ParaNorman foi extremamente bem recebido no seu lançamento, com 89% de aprovação no Rotten Tomatoes, recebendo indicação ao Oscar de Melhor Animação e se tornando o primeiro filme PG-13 a ser indicado ao prêmio GLAAD (a organização não-governamental que monitora representações LGBT na mídia). Indicação que se deve ao fato deste ser a primeira animação lançada por um grande estúdio a ter um personagem abertamente LGBT (não vou dar mais detalhes sobre isso porque é um detalhe bacana de se descobrir vendo).
O filme é merecedor de todos os elogios que recebeu e na minha opinião merecia ainda mais (ele ter perdido o Oscar para Valente é uma injustiça que considero imperdoável). A animação é belíssima, o filme em momento algum subestima a inteligência do seu público alvo e nem suaviza temas mais pesados por achar que a audiência infantil não seja capaz de lidar, sem falar que o roteiro casa um humor mais pastelão com o ácido de um jeito que é simplesmente delicioso e que não atrapalha os momentos mais dramáticos da trama.
Uma das minhas cenas favoritas é quando os moradores da cidade entram em pânico e começam a atacar uns aos outros um dele começa a atirar a esmo. Nessa hora a xerife da cidade aparece furiosa e diz “Estão atirando em civis? Isso é trabalho da polícia!”.
O filme também é claramente o trabalho de pessoas apaixonadas pelo gênero, fãs de filmes de horror vão se deleitar com as referências presentes. O toque do celular de Norman é a famosa trilha sonora de Halloween, além é claro da história principal que em vários momentos lembra O Sexto Sentido e outras referências picotadas ao longo da história. Sem falar do próprio design dos zumbis que são bem macabros e marcantes.
São várias as razões para se amar Paranorman, mas uma específica que me marca mais que qualquer outra. O filme é, na minha opinião, um dos exemplares mais perfeitos do que pode ser uma história de terror queer. Ainda que seja voltada para um público infantil, é isto que ela é: uma belíssima história de horror queer e uma das minhas favoritas do gênero, isso vai para além do personagem abertamente gay (que na verdade é apenas um detalhe e é a cereja do bolo nessa história toda). Chris Butler, um dos diretores e o roteirista, é um homem gay e permeou o filme com uma sensibilidade queer fortíssima. Histórias infantis que falam sobre aceitação do diferente e se amar do jeito que você é não são novidade, mas aqui os diretores conseguiram transformar isso numa história que fala de forma quase explícita sobre a importância de se proteger crianças queer.
As crianças e a sua inocência são muito citadas em discursos de cunho conservador, sempre se fala da importância de protegê-las e em nome disso tudo pode ser feito. Mas esse discurso fala de um tipo bem específico e idealizado (e bem… praticamente impossível) de criança, a partir do momento em que ela passa a agir fora do que se espera é como se ela tivesse esse direito a proteção revogado. Essa criança agora pode ser isolada, pode ser vítima de violências e de humilhações. Isso é algo com que pessoas LGBT podem facilmente se identificar, pessoas que foram crianças que eram diferentes e sofreram justamente por isso.
Esse é o tom da narrativa de Norman. Ele é essa criança diferenciada que não consegue ser compreendida nem dentro de casa e que por isso vive numa solidão imensa. Não só seus pais não o entendem como também o incentivam a esconder isso e se comportar “igual aos outros”, em um momento do filme Norman fala que não pediu para “nascer assim” e recebe como resposta do seu pai: “Engraçado, nós também não”.
Norman acaba sendo essa criança “monstruosa” descobrindo como pessoas que consideram “boas” e “normais” podem ser verdadeiros monstros ao entrarem em contato com a alteridade. Mais do que isso ele também acaba entrando em contato com a história trágica de uma pessoa igual a ele que viveu no passado e nisso se reconcilia com a suas próprias peculiaridades e diferenças. O filme inclusive brinca com a expectativa do público subvertendo o papel de quem-assusta-quem de um jeito que não apenas é divertido, como também potencializa ainda mais a mensagem da história.
Bom, acho que o tom queer desse filme é mais do que evidente, nem sequer acho que podemos de chamar de subtexto, é texto mesmo. Toda a jornada de Norman é contada com todo o respeito e cuidado possível de forma que é quase impossível não se emocionar nos momentos finais do filme e no confronto dele com a bruxa e na forma como ambos se espelham. Chris Butler disse que queria fazer uma história sobre tolerância, eu diria que ele conseguiu ir além do que várias histórias do gênero conseguiram ir. ParaNorman é uma história sobre o medo e como ele leva a intolerância e a atos imperdoáveis (palavras do próprio Norman), a escolha dos diretores contá-la usando o terror e todo o arsenal que o gênero traz não poderia ser mais perfeita. Além de ser mais um excelente exemplar do potencial do terror para falar sobre assuntos complexos e humanos. É terror e é também divertido, emotivo e demonstra profunda empatia na hora de mostrar as angústias de Norman e das pessoas que estão sendo punidas pelos atos que cometeram quando estavam com cegadas pelo medo.
Por ser um filme infantil ele traz uma nota de otimismo no final que talvez precisemos hoje mais do que nunca. ParaNorman traz a esperança não só de que as crianças monstruosas possam ser aceitas pelo o que são sem restrição, mas de que talvez possamos também nos redimir com todas as que já se foram e não conseguiram.
PARANORMAN
USA | 2012 | 92 min.
Direção: Sam Fell & Chris Butler
Roteiro: Chris Butler
Elenco: Kodi Smit-McPhee, Jodelle Ferland, Bernard Hill, Tucker Albrizzi, Anna Kendrick, Casey Affleck, Christopher Mintz-Plasse, Leslie Mann, Jeff Garlin, Elaine Stritch, Tempestt Bledsoe, Alex Borstein e John Goodman
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