[Crítica] Lovecraft Country e suas diferentes monstruosidades
Atualizado: 17 de fev. de 2021
Para qualquer fã de horror o nome Lovecraft é algo bem comum de aparecer em qualquer conversa de bar ou texto sobre influências dentro do gênero. O escritor criou seu próprio mundo envolto em medos e popularizou um subgênero antes não tão trabalhado: o Horror Cósmico. Em suas histórias monstros de outros universos e realidades entravam em conflitos com seus protagonistas e tiravam deles o que restava de sua sanidade. Essas criaturas indecifráveis se tornaram marca registrada do autor, qualquer coisa com um tentáculo ou algo vindo de outra galáxia que não possui uma forma de fácil reconhecimento já está automaticamente intitulada de Lovecraftiana. Eu mesmo sou obcecado e apaixonado por esses tipos de histórias, já li diversos contos do Sr. Lovi e posso dizer que muito além desse medo do encontro da mente humana com essas criaturas, outras coisas se manifestam nestes textos, em seus contos e em toda sua existência: o medo do desconhecido. E esse desconhecido, na maioria das vezes disfarçado por monstros, era uma representação bem clara de algo que o próprio Lovecraft detestava com todas as suas fibras e tentáculos. Acho que nesse ponto do texto você já sabe o que eu quero dizer: ele era um racista xenofóbico de merda.
Não se preocupe, caro leitor, não estou aqui para “cancelar” o Lovecraft ou negar sua importância, muito pelo contrário. Admiro o trabalho do autor, suas histórias mexem comigo, me instigam e seu impacto no gênero moldou diversas obras-primas importantíssimas para o horror. Muito se fala sobre separar a obra do autor, mas no caso DESTE tipo de autor, isso é possível? Por Deus, nomeamos um subgênero inteiro em homenagem ao homem! Reconhecer seus erros, desvios de caráter e entender sobre o que seus contos falavam é um exercício importante feito na hora de absorver qualquer coisa na ficção. Pessoas horríveis podem escrever coisas maravilhosas. E as obras de Lovecraft geram uma dubiedade tão deliciosa que diversas leituras podem sair delas, se você quiser, pode perceber o claro ódio do autor à pessoas não-brancas e o colonialismo latente, como pode, também, tirar novas leituras e imaginá-las como quiser. No final das contas a maior vingança que podemos ter - culturalmente falando - contra esse tipo de autor é roubar dele o que ele usou para machucar outras pessoas. Afinal, depois do entendimento e interpretação do texto o que pode vir? A resposta é clara: a subversão. Foi nessa vertente que surgiu uma das séries mais insanas, divertidas, inteligentes e importantes de 2020: Lovecraft Country.
Baseada no livro homônimo de Matt Ruff, a série usa diversas inspirações de clássicas histórias de horror e ficção-científica para falar sobre a segregação-racial nos Estados Unidos durante a década de 1950. Logo em sua cena de abertura já temos um vislumbre do que mais gostamos desse tipo de fantasia: monstros lovecraftianos voadores, naves alienígenas à la Guerra dos Mundos, uma princesa marciana e guerreiros espartanos lutando contra soldados com suas roupas camufladas. Tudo isso para logo depois sermos acordados junto com o protagonista, interpretado pelo Jonathan Majors que está EXCELENTE no papel, para sermos trazidos à uma realidade um pouco mais difícil e assustadoramente próxima.
Gosto de como o primeiro episódio trabalha a questão do horror. Entramos esperando monstros, coisas malucas e muito sangue. Mas esse medo se manifesta da forma mais real e crua possível: o racismo. Durante sua hora inicial, Lovecraft Country não poupa o telespectador, somos introduzidos ao nosso grupo de protagonistas e temos leves vislumbres sobre seus passados, mas a coisa começa a ficar tensa quando eles saem de seu “porto seguro” para entrar na road trip que abre a série. Em seu momento mais emblemático, os personagens são perseguidos por um policial branco e têm até o pôr do sol para sair das fronteiras da cidade. São minutos de pura tensão e desespero. Você vai vendo a hora passar, a luz sumindo, o policial atrás do carro e os protagonistas completamente em pânico por saberem que se não conseguirem sair de lá estão ferrados. É uma clássica construção de uma cena de horror, só que aqui o medo não está focado no fantástico ou no sobrenatural, a realidade é monstruosa, você já está completamente tenso e até esse ponto não vimos nenhuma criatura de outro universo ainda.
A partir da primeira introdução dos Shoggoths (criaturas já conhecidas do universo Lovecraftiano), a série descamba para uma fantasia de horror e ficção-científica mais cartunesca e despretensiosa. É uma bela homenagem às histórias pulp publicadas na década de 1950 e usar destes elementos tão conhecidos por fãs do gênero para falar sobre segregação racial é um trunfo gigantesco. Do mesmo jeito que Lovecraft - e diversos outros autores de sua geração - usavam de suas narrativas para criar esse medo ao desconhecido traçando paralelos racistas e xenofóbicos bem claros, Lovecraft Country faz o mesmo, porém invertendo a linha de discurso. Aqui os monstros reais são humanos e a monstruosidade deles se solidifica em suas ações. O fantástico, o sobrenatural e o ficcional não são nossa real ameaça e sim como eles são usados.
Outra coisa que - para mim - é uma das maiores qualidades foi a abordagem escolhida por Misha Green, showrunner da série. Desde a forma como foi vendida e por conter selos fortes em sua produção, como o de original HBO e os nomes de Jordan Peele e J. J. Abrams (que são apenas produtores) em absolutamente todas as imagens e matérias sobre, talvez confundiram um pouco as expectativas do público. Lovecraft Country não se propõe em ser tão séria e sutil como muitos acharam, ela é uma fantasia escrachada, cartunesca, completamente camp e quase antológica. Diga-se de passagem que o modelo procedural (histórias diferentes com os mesmos personagens por episódio) não é novo na televisão e a série faz um belo trabalho em costurar suas narrativas separadas em um universo maluco, porém coeso.
No final das contas você vai ter magia, monstros das mais variadas formas, fantasmas, realidades paralelas, robôs futuristas, viagem no tempo, criaturas folclóricas, pessoas trocando de pele, body horror e mais uma caralhada de coisa diferente. É um bombardeio de informação por episódio, mas nada está ali por acaso e mesmo que algumas desculpas sejam um pouco esfarrapadas, elas ainda servem para um propósito maior que é falar sobre o racismo nos Estados Unidos. Esse monstro real que ressoa até hoje e Lovecraft Country acerta em nos trazer para perto disso, mesmo a série se passando 70 anos atrás, algumas coisas são assustadoramente atuais e é aí que mora o verdadeiro horror.
Alguns episódios podem soar como isolados ou perdidos na história, li muitos comentários falando que faltava foco na narrativa, mas de verdade acredito que o foco estava muito mais na construção do universo e dos personagens do que qualquer outra coisa. Nem todo roteiro precisa ser extremamente fechado e pé no chão. Talvez o foco seja a loucura mesmo. Nesta nascem desenvolvimentos incríveis de personagens que poderiam acabar passando como unidimensionais ou não tão importantes para a história central. Por exemplo, em um de seus momentos mais inspirados, durante o sétimo episódio, intitulado de I Am, temos todo o foco na personagem de Aunjanue Ellis viajando por diferentes dimensões e galáxias em uma jornada de autodescoberta. Ela passa por um futuro afrocentrado, dança em Paris com Josephine Baker, lidera um grupo de guerreiras e por fim entra em paz ao redescobrir sua grandiosidade há muito perdida e roubada de si. O episódio por si só pode soar como um filler e seu encaixe na narrativa principal um pouco forçado (ele basicamente existe para justificar o uso da máquina do tempo para o episódio sobre Tulsa mais para frente), mas é tão bonito e bem escrito que é impossível não sorrir a cada segundo da aventura de Hippolyta.
Todos os personagens ganham episódios assim, com suas pequenas aventuras de horror e fantasia os engrandecendo, é um texto sincero, expositivo, mas ao mesmo tempo delicado e carinho com seu desenvolvimento. Isso tudo sem falar no pano histórico real que permeia toda a temporada. Já que além de aventuras e referências mágicas e cósmicas, temos também pequenas aulas de história sobre o racismo, a luta pelo fim da segregação racial e até um pouquinho sobre a cultura dos ballrooms (festas secretas que eram refúgio e celebração para pessoas LGBTs nessa época e viriam a se popularizar nas décadas seguintes).
Em seu último episódio a série costura seus personagens e aventuras em um catártico desfecho um pouco... pessimista? Eu sinceramente adorei a forma como as coisas se encerraram e não ficaria triste se anunciassem o fim da série aqui, este episódio fecha bem o ciclo da história e dos personagens, mas não consigo deixar de me coçar e ver o que mais Misha Green pode nos oferecer em uma possível segunda temporada para a série. No final Lovecraft Country é muito mais despretensiosa do que parecia ser. Mesmo com seu impacto e o shock value lá em cima devido às suas cenas extremamente violentas e gráficas, ainda assim, é uma grande aventura de fantasia com belíssimos toques de horror e ficção-científica. E o melhor de tudo: o próprio Lovecraft teria um troço se visse seu nome associado com uma obra tão subversiva assim.
P.S.: Percebi que não falei muito sobre o elenco no texto, mas a Jurnee Smollett é uma força da natureza, o coração da série e eu amo ela muito!
LOVECRAFT COUNTRY
T01 | HBO | 10 episódios
Criado por: Misha Green
Elenco: Jonathan Majors, Jurnee Smollett, Aunjanue Ellis, Courtney B. Vance, Wunmi Mosaku, Abbey Lee, Jamie Chung, Jada Harris, Michael K. Williams