[Livro] "Saboroso Cadáver" e seu banquete indigesto
Em 1729, o escritor irlandês Jonathan Swift, autor do famoso livro As Viagens de Gulliver, escreveu o panfleto Uma Modesta Proposta. Nele Swift propõe uma solução muito simples para os problemas relacionados à fome, miséria e criminalidade que assolavam a Irlanda: que os ricos devorassem as crianças das famílias pobres. O texto é uma sátira corrosiva às teorias e soluções "pragmáticas", moralistas e absurdas da época que buscavam explicar e erradicar problemas sociais sérios e complexos.
“Portanto ofereço humildemente à consideração pública que, das cento e vinte mil crianças já computadas, se possam reservar vinte mil para criação. Desta parte, apenas um quarto deverá ser de machos – o que já é mais do que permitimos às ovelhas, ao gado bovino e ao suíno. A minha justificação é que estas crianças raramente são fruto do casamento, uma circunstância não muito considerada pelos nossos selvagens, pelo que um macho será suficiente para servir quatro fêmeas.“ - Jonathan Swift (tradução: Helena Barbas)
Histórias sobre classes nobres e mais abastadas literalmente devorando a população pobre é recorrente nas artes. O clássico Drácula apresenta um nobre e sua trupe de criaturas que vivem do sangue dos pobres coitados que vivem nos vilarejos ao redor do castelo, a penny dreadful e musical Sweeney Todd nos mostra a massa sem rosto que mora nas periferias de Londres virando recheio de tortas, o terror colombiano Pura Sangre (1982) é protagonizado por uma quadrilha que sequestra e mata crianças para usar o sangue no tratamento do seu chefe e por aí vai. Nesse exemplos o vampirismo e o canibalismo não são algo sensual ou manifestação de um desejo intenso (como em filmes de vampirismo lésbico por exemplo) e nem tanto como um símbolo de “selvageria” (como os filmes italianos sobre canibalismo que colocavam povos não brancos nesse lugar de não-civilizados), mas uma manifestação das tensões de classe e do mundo industrial em que corpos não são mais do que uma massa que mantém viva uma certa elite. Um ato de selvageria permitido dentro da “civilização”. É nesse cânone que se insere o livro Saboroso Cadáver da escritora argentina Agustina Bazterrica.
Publicado originalmente em 2017, o livro acompanha o protagonista Marcos no seu dia a dia após a morte do seu filho. Marcos visivelmente ainda não superou a perda e ainda tem que lidar com o pai em um estágio avançado de demência e com o seu trabalho brutal: Marcos trabalha em um matadouro num mundo em que a principal carne consumida é a carne humana. Uma doença misteriosa afetou a maioria dos animais e deixou a sua carne imprópria para consumo, não demorou para que empresários vissem potencial no abate e venda de humanos. Seus dias de apatia e solidão diante de restos humanos marcados com fogo e corpos esfolados são abalados quando ele recebe uma fêmea como uma forma de gratificação.
A autora comentou em entrevistas que a ideia pro romance surgiu quando ela estava olhando para um açougue e pensou em como aquilo não passava de um local cheio de restos de cadáveres em exposição. O livro porém é mais do que um panfleto pró-veganismo (embora isso ainda seja algo proeminente no livro), Bazterrica abraça a tradição do fantástico argentino de transformar o banal e cotidiano em algo estranho e talvez até ameaçador. Enquanto escritores como Julio Cortázar e Samanta Schweblin são capazes de transformar o simples ato de vestir um suéter numa experiência estressante e absurda, Bazterrica aqui faz o ato de comer um bife parecer a experiência mais atroz que o leitor já leu.
A premissa do livro permite a autora destacar questões de classe e raça que permeiam o consumo de carne e, mais além, falar do funcionamento do processo de desumanização que permitem a existência de massacres e como o capitalismo se aproveita disso. No livro, se referir às vítimas como sendo pessoas não só é tabu como é proibido, elas marcadas com fogo no rosto, tem o cabelo raspado e as cordas vocais arrancadas, qualquer traço de humanidade é sufocado, mas isso sozinho não funcionaria sem o aval da população. Seja por omissão ou por sadismo deliberado, a carnificina é algo de conhecimento geral e em varios casos transformada num ritual ou em símbolo de status (como a irmã do protagonista que o atormenta querendo um humano de estimação só para si por ser algo na moda).
A escrita de Bazterrica dá o tom desse mundo árido de esperança. Frases curtas, poucos adjetivos e burocrática em varios momentos ao descrever os atos de violência, o protagonista parece ver o mundo num constante estado de letargia sem espaço para sentimentos. O protagonista já aparenta estar morto por dentro e se arrastando pelos capítulos que se seguem, a sua vida interior praticamente inexistente reforça a crueldade e ausência de sentido no mundo ao seu redor.
A visão misantrópica da autora porém se torna cansativa relativamente cedo no livro. A trama do protagonista com a sua humana é um estopim para cada capítulo conhecermos uma nova faceta desse mundo (os humanos miseráveis que se alimentam dos restos descartados pelo matadouro, o funcionamento do mesmo, um grupo de ricos que já caçava pessoas antes da doença se espalhar, etc) ou então da profunda depressão que Marcos está mergulhado. Os capítulos se acumulam descrevendo atos de violência que são banalizados nesse mundo ao mesmo tempo que fica a sensação de que não temos uma explicação muito maior sobre o funcionamento dele (para além de sabermos que se trata de um estado policial não temos uma noção mais aprofundada de como funciona esse governo por exemplo). O texto clássico de Jonathan Swift vem à mente várias vezes durante a leitura justamente pelo livro se assemelhar com as longas descrições que ele faz do seu modelo de sociedade canibal. Ainda que isso não seja algo negativo por si só (em vários momentos é um dos pontos altos do livro), a sensação de estar lendo um catálogo de crueldades e a ausência de um foco maior na trama pode decepcionar alguns leitores. Os desdobramentos envolvendo a humana na posse de Marcos parece algo quase em segundo plano na maior parte do tempo e o desfecho apressado que resolve grande parte da tensão da segunda metade em um capítulo de poucas páginas certamente será insatisfatório para muitos.
Ainda que um tanto indigesto (trocadilho infame obrigatório), é inegável o poder que Bazterrica tem de manter a atenção do leitor. A escrita quase hipnótica da autora faz as páginas voarem e o incômodo que ela busca causar é constante (tanto pelo nojo, quanto pela indiferença que começa a afetar o próprio leitor em certo ponto). A imaginação macabra e seu poder de imersão fazem de Agustina Bazterrica um dos nomes da literatura latino americana que vale a pena se observar. O banquete indigesto que a autora oferece em Saboroso Cadáver parece um interessante cartão de visita para a mundo de Bazterrica e ao que ela tem a oferecer.
SABOROSO CADÁVER
2017 | 192 páginas
Autora: Agustina Bazterrica
Tradução: Ayelén Medail
Editora: Darkside
Eu simplesmente não entendi porque o Marcos matou a humana/carne depois de parecer uma pessoa decente. Eu tenho uma ideia mas não entendi. Alguém poderia compartilhar seu pensamento sobre?