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Foto do escritorDavi Barros

Havia Sangue em seus Lábios: Sobre algumas adaptações de Salomé


Poucas eras do cinema parecem ser mais propensas para uma adaptação de uma peça de Oscar Wilde do que a Hollywood antes do Código Hays. A mistura de tragédia e decadência eram perfeitas para uma estrela como Alla Nazimova, que um ano antes havia interpretado a protagonista em Camille (1921) de Ray C. Smallwood, baseado na obra de Alexandre Dumas. Infelizmente Nazimova não ganharia a mesma notoriedade para a posterioridade tal qual outras atrizes de seu porte como Greta Garbo, isso devido ao fato de que boa parte de seus filmes estão perdidos, o que torna Salomé (1922) ainda mais precioso. Ilustre por supostamente conter uma equipe quase que inteiramente gay e bissexual, os elementos queers do filme se estendem de outras formas, o que não é surpreendente tendo em consideração a sua fonte. Esses elementos estão presentes em quase que todas as adaptações da tragédia em um ato de Wilde, de Carmelo Bene à Ken Russell, com cada versão trazendo diferentes adições. A de Nazimova leva a peça às suas raízes teatrais e é marcada pelo seu desbunde visual, por vezes até beirando o experimental.


Nazimova não seria a única autora queer a adaptar essa obra para as telas, em 1976 o cineasta mexicano Téo Hernández realizaria sua própria versão de Salomé, ainda mais experimental e sensorial. Seu filme tem pouco interesse em estabelecer uma narrativa clássica, se passando majoritariamente em um fundo escuro com três atores em cena, por vezes nenhum. Sua adaptação é como ser transportado para outro universo com suas próprias regras e velocidade, se maravilhar com gestos e artefatos em cena. Pode-se dizer que o filme é quase como um ritual à lá Kenneth Anger, uma dança dos sete véus que dura sessenta e cinco minutos. Uma caveira e uma taça são os únicos símbolos restantes que informam o espectador ligações mais explicitas com a peça de Wilde, mas justamente por focar não necessariamente na história mas no esplendor de suas imagens, em sua magia que o filme se aproxima da obra do escritor irlandês. A sua forma também remete a época do cinema mudo, devido a ausência de diálogos do filme, onde se escuta na banda sonora o barulho do mar e músicas de outrora.


Salomé (1922) de Alla Nazimova e Charles Bryant.

A música seria um elemento fundamental em outra adaptação: a de Werner Schroeter realizada em 1971. Sua versão, uma das mais teatrais, encara a tragédia como uma ópera e assim eleva os sentimentos já exacerbados dos personagens. Assim como Nazimova, Schroeter é perfeito para adaptar Wilde pois para ambos há a mais pura crença no excesso, em tornar a própria vida em obra de arte. Em sua obra, amor e morte estão profundamente interligados, então nada mais justo do que contar a história de uma princesa cujo a sua paixão leva a decapitação de seu objeto amado e em sua derrocada. Como era de costume do diretor nessa época, assim como outras versões o filme também carrega um lado experimental, nesse caso um pouco mais remetente aos longas de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet como Antígona (1992). Uma adição queer curiosa a essa versão é a escolha da atriz Magdalena Montezuma para o papel de Herodes, algo que Schroeter já havia explorado em outros filmes com ela, como Eika Katappa (1969) e A Morte de Maria Malibran (1972), onde também interpreta personagens masculinos. Aqui, a cena final ganha um poder deslumbrante devido ao uso de Liebestod, os gritos desesperados de Mascha Rabben expressando toda sua angústia em um momento tanto sublime quanto grotesco, belo e abjeto, quando ela beija a cabeça decapitada de Iokanaan e sente em seus lábios o gosto de sangue.


Se trata de uma peça e filmes povoadas por desejos impossíveis, que nunca serão recíprocos, desde o jovem por Salomé quanto o dela por Iokanaan. Nazimova, Hernández e Schroeter expressam esse anseio de formas distintas, de rostos que não se cruzam, como se cada um habitasse em seu próprio mundo interior. A própria figura de Salomé é uma personagem curiosa, femme fatale ao mesmo tempo que é uma heroína trágica e simplesmente uma jovem cegada pelo amor, que deixa de se tornar objeto de desejo de seu padrasto no momento em que revela a sua “loucura”. Há algo um tanto mágico na peça, uma certa magia perversa inclassificável, como se todo esse evento já estivesse predestinado pela lua e esses personagens incapazes de alterar seus destinos, fadados a tragédia. Talvez essa perversa magia se dê no amour fou de Salomé por Iokanaan, “o amor tem um gosto amargo” ela declara em determinado momento da peça, e é esse sentimento que ressoa o mais fortemente, das contradições dessa emoção tão forte. Há quase que um desejo queer que perpassa por todas essas versões, por amar algo que não se pode ter, que causa incompreensão e horror aos outros, pois afinal o mistério do amor é maior do que o mistério da morte. Como diria Georges Bataille: “o beijo é o começo do canibalismo”, e Salomé parece tocar nessa linha tênue que existe entre o sublime e o grotesco.

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