Doentiamente Doce: Visitando a "Mansão do Inferno"
A regra número 1 para qualquer boa continuação de terror nos anos 80 era servir mais do mesmo, com uma grande ênfase no "mais". Uma réplica do primeiro com mais sangue, mais mortes, mais efeitos, mais ação, e às vezes mais dinheiro também. Se seu filme fosse um sucesso, ele provavelmente iria ganhar pelo menos uma sequência, e assim foi o caso com Suspiria (1977) - o violento conto-de-fadas em Technicolor que oficialmente estabeleceu Dario Argento como um ícone do horror internacional. Agora com apoio da 20th Century Fox, a ideia era basicamente fazer um bom e velho repeteco, no que viria ser o segundo capítulo da Trilogia das Mães - cada filme focado em uma das três figuras diabólicas originadas no Suspiria de Profundis, de Thomas De Quincey.
Concebido pela atriz e co-roteirista Daria Nicolodi como uma reinvenção de João & Maria (tal qual o seu Suspiria era inspirado na Branca de Neve e os Sete Anões), A Mansão do Inferno transpõe a floresta encantada para uma Manhattan simultaneamente contemporânea e ancestral. É lá que Rose Elliot (Irene Miracle), uma jovem poetisa, descobre que o antigo prédio onde ela mora pode ser o lar de uma diabólica divindade, A Mãe das Sombras. Quando Rose desaparece, seu irmão Mark (Leigh McCloskey) vai até o misterioso edifício investigar seu paradeiro - as pistas formando uma trilha de sangue pelos escombros do prédio, guiando o rapaz até o coração das trevas.
Mesmo mantendo a inspiração nos Irmãos Grimm, Inferno é mais epopeico do que fabulesco, não apenas por se dividir entre duas cidades (um terço da ação ocorre em Roma, onde habita a Terceira Mãe), mas também pelo tom quase homérico da jornada de Mark em busca da irmã, e na forma episódica que o roteiro navega entre as mais diversas situações e personagens - todos descartados da forma mais violenta possível após servirem seu propósito. Gatos de rua se revelam como esfinges que guardam os segredos mais obscuros dessa metrópole mal-assombrada, e até a representação visual das Três Mães não é a da bruxa clássica como em Suspiria (Argento insiste que não se trata de feitiçaria), mas como algo mais ancião e poderoso - elas são as Moiras da mitologia grega, tecendo o destino de todos os seres à sua volta, de homens à ratos.
A influência do poema épico se estende até a arquitetura labiríntica da tal "Mansão do Inferno". A criação de um alquimista, sua planta-baixa está em metamorfose constante. Seu interior é tomado por um perfume descrito como "doentiamente doce" (um paralelo com a casa de pão-de-mel em João & Maria), enquanto quartos e salas surgem e desaparecem magicamente como num sonho, variando entre o gótico e o art déco. Uma escada de emergência leva à uma oficina de taxidermia, que por sua vez se transforma numa confeitaria abandonada. Um duto de ar condicionado vira uma passagem secreta para outras dimensões. Um cano quebrado forma uma poça d'água que esconde um salão de baile sob a superfície. Os andares infinitos desse palacete maldito - cada um contendo seu próprio mistério terrível - se revelam análogos aos nove círculos do Inferno de Dante, a Divina Comédia revisitada por Dario Argento.
Se Inferno foi concebido como a segunda parte da Trilogia das Mães, ele também acaba sendo o encerramento de outra trilogia - uma que começa um pouco antes em Prelúdio para Matar (1975), demarcando o ápice da colaboração criativa e pessoal entre Dario Argento e Daria Nicolodi. Partindo de Prelúdio, seus filmes gradativamente se desprendem do formato giallo, saindo do mundo real e mergulhando no universo dos sonhos em seu estado mais primitivo e febril, como um pesadelo infantil. Afundamos cada vez mais naquele desenho do pequeno Carlo - a violência do mundo retratada da maneira mais monstruosa e irracional, pintada em tons vibrantes e ângulos distorcidos, tinta vermelha escorrendo em abundância pelos corpos mutilados.
Nos três filmes, a profissão dos seus respectivos protagonistas parece quase irrelevante para a trama, mas dita o estilo e a atmosfera de cada um. Em Prelúdio, Marcus é um pianista de jazz, e a história se desenrola propriamente como uma grande improvisação de jazz em cima de um tema batido. Pouquíssima dança é vista na escola de balé em Suspiria, mas isso não importa já que o filme em si é um balé, seus assassinatos espetaculares meticulosamente coreografados ao som de Goblin. Da mesma forma, Mark é um estudante de música, visto pela primeira vez escutando Nabucco de Verdi numa sala de aula, e portanto o filme se apresenta como uma grande ópera filmada.
Keith Emerson foi muito criticado como substituto de Goblin na trilha sonora, e talvez sua abordagem operística falte o experimentalismo sonoro que tornou Suspiria tão memorável, mas as comparações são injustas quando o som de Inferno é deliberadamente oposto. Da primeira vez que vemos a fachada do prédio de Rose, fica claro que estamos dentro de um palco - essa é a Nova York dos sonhos, dos grandes musicais da Broadway, e assim, a música que acompanha cada minuto de cena remete à Gershwin e Bernstein. Da mesma forma, quando a ação muda para Roma, são variações em Verdi que permeiam cada sombra da cidade eterna. Todas as mirabolantes sequências de horror acontecem com a mesma aleatoriedade e a mesma energia pulsante de um número musical dirigido por Vincente Minnelli, conforme Emerson e Argento orquestram sua própria Rapsódia em Vermelho.
Ver Inferno como a última etapa de uma “trilogia acidental” não o torna melhor que seus antecessores (muitos fãs de Argento vão justamente falar o contrário), mas pode se dizer que Suspiria e Prelúdio para Matar eram meros rascunhos para o que nesse é o desenho final - completamente desligado do formato giallo (não existe nenhum real mistério a ser revelado, nenhuma testemunha ocular desvendando o quebra cabeça) e completamente imerso no fantástico, mergulhando nas profundezas do inconsciente onde as regras da realidade não se aplicam (enfatizando suas origens em Thomas De Quincey, cuja escrita era composta essencialmente por fragmentos de sonhos e alucinações em prosa poética). Muito já foi dito sobre suas falhas de roteiro, e como a falta de foco e polidez o tornam automaticamente inferior à Suspiria, mas são justamente essas "falhas" que enfatizam seu propósito, e te absorvem num estado completamente livre das burocracias do realismo. É o lema que Lucio Fulci pregava na mesma época com Pavor na Cidade dos Zumbis (1980) e Terror nas Trevas (1981), uma espécie de “puro cinema” cuja lógica é guiada exclusivamente por imagem e som, rejeitando um formato narrativo americano quadrado e conservador.
A 20th Century Fox esperava que Inferno fosse essencialmente uma refilmagem de Suspiria, mas no fundo ele está mais para uma releitura do Vampyr (1932) de Carl Theodor Dreyer - o grande clássico do terror surrealista, que se esbalda em suas imperfeições. Tal qual Mark, o protagonista de Dreyer parece estar num estado de perpétuo sonambulismo, navegando entre paisagens de sonho - mais como um observador do que como um participante ativo - seguindo as pistas de um velho livro até uma mansão onde jovens garotas são vítimas de uma bruxa velha (auxiliada por um excêntrico professor), que eventualmente toma a forma de um esqueleto, a Morte personificada. É como se a visão de Dreyer saísse daquele preto e branco difuso e ganhasse vida nova em cores primárias, mas mantendo aquele mesmo feitiço hipnótico.
Leigh McCloskey é tido como um dos piores protagonistas de Argento, mas sua eficácia funciona da mesma forma que Julian West em Vampyr. Um Himbo no País das Maravilhas que não faz ideia o que está acontecendo ao seu redor, o que talvez seja justamente a chave para sua sobrevivência - nesse mundo, a sabedoria é uma praga que leva todos os outros personagens a um trágico fim. Mark é uma figura completamente despida de personalidade, pois sua única função é ser os olhos da platéia para dentro da ação - sua falta de proatividade e incompreensão dos eventos refletem a perplexidade no público. Estamos todos sonhando junto dele, e assim como Tony Musante preso entre as portas de vidro no Pássaro das Plumas de Cristal, ou Cristina Marsilach com agulhas debaixo dos olhos em Terror na Ópera; podemos apenas testemunhar sem interferir nesse grande show de horrores - repulsivo demais de se ver, mas impossível de se resistir.
De todos os seus trabalhos, Inferno está longe de ser o favorito do próprio Argento. Suas memórias do set não são as mais queridas, já que o diretor foi hospitalizado e uma boa parte da gravação acabou sendo dirigida por outras pessoas. É menos um filme de autor, e mais um filme de autores - desde os velhos colaboradores como Daria Nicolodi na dramaturgia ou Giuseppe Bassan na cenografia, até ninguém menos que o grande pioneiro do terror italiano, Mario Bava. Originalmente contratado para criar os mais elaborados efeitos visuais, supostamente ele teria tomando as rédeas da direção na ausência de Argento. Não se sabe exatamente o quanto que Bava dirigiu (algumas partes foram rodadas pelo seu filho, Lamberto), mas sua marca está presente em cada canto desse filme, que mais do que qualquer outro, parece o verdadeiro percursor daquele surrealismo gótico muito particular de O Ciclo do Pavor (1966) ou Lisa e o Diabo (1973). Esse foi seu último filme antes de morrer, e o último filme que Argento realizou nesse estilo (seu trabalho seguinte, Tenebre, é o exato oposto em todos os sentidos; e O Retorno da Maldição (2006) é um decepcionante desfecho para a Trilogia das Mães, que opta por uma estética digital completamente anêmica).
Fechando com o grito triunfante da Morte em meio ao fogo infernal que ameaça se espalhar mundo afora, A Mansão do Inferno é, portanto, a marcha fúnebre do terror italiano clássico - um adeus aos pesadelos pintados de Mario Bava, um adeus à relação criativa entre Argento e Nicolodi, e um adeus a essa explosão de total liberdade artística que foi sumindo do cinema de horror ao longo da década de 80.
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