[Crítica] 'Herege' vai fazer você acreditar
Só sei que nada sei. Sócrates lacrou muito ao notar que a sabedoria de alguém era resultado do reconhecimento da própria ignorância, e que mesmo as certezas mais enraizadas precisam ser contestadas, sempre. Esse processo contínuo de busca pelo saber é meio paradoxal: quanto mais se sabe, menos se sabe, porque mais se questiona.
Esse jogo de sentidos funciona porque desafia a ideia comum de que saber significa possuir respostas definitivas para tudo. Em um mundo mutável, o melhor caminho para o conhecimento é não se apegar a convicções e preferir ser uma metamorfose ambulante. Mas, evidentemente, essa afirmação também pode - deve? - ser questionada. E existe, sim, um tipo de saber que não precisa ser contestado exaustivamente para se provar verdadeiro: aquele que vem da fé.
Filosofia teológica não é bem o que eu esperava que o Hugh Grant, nosso queridinho da comédia romântica, servisse em seu novo papel. Mas ele faz isso tão bem em Herege (2024) que eu acho que poderia ficar horas conversando com ele sobre qualquer assunto. A não ser que, lentamente, o carisma dele fosse deixando de ser encantador e passasse a ser aterrorizante. Sob a direção de Scott Beck e Bryan Woods, que já haviam dirigido A Casa do Terror (2019) e roteirizado Um Lugar Silencioso (2018) em dupla, o charmoso Hugh Grant interpreta Mr. Reed, o vilão mais simpático dos últimos tempos. Ele recebe em sua casa, no começo de uma tempestade, duas jovens missionárias mórmons, interpretadas por Chloe East e Sophie Thatcher - sim, temos a Natalie de Yellowjackets pregando a palavra.
Em quase duas horas de filme, vamos entrando cada vez mais fundo na casa e nos planos de Mr. Reed. As jovens, que foram até lá casa para buscar convertê-lo, acabam caindo no conto do método socrático. Com perguntas simples, o anfitrião começa a guiá-las em reflexões sobre a própria fé e sobre religiosidade de forma geral. Sua polidez britânica contrasta com a tensão espessa que o diálogo vai construindo, e é ressaltada pelas piadas pontuais que são realmente engraçadas. Mas as meninas não riem.
Não sabemos os nomes delas, mas sim os sobrenomes, pois assim funcionam as alcunhas na Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. Irmã Paxton é inocente e tagarela, Irmã Barnes parece ser mais séria e espertinha. Isso se nota desde a primeira cena, quando Paxton critica o poder que as campanhas publicitárias têm na visão de mundo das pessoas, sem perceber que sua missão de espalhar doutrina e chamar para a Igreja é um exemplo perfeito de propaganda. Barnes constata essa contradição em silêncio.
Elas expressam suas posturas opostas durante toda a conversa com Mr. Reed: uma sente, a outra pensa; uma intui, a outra conclui. Quando a ameaça começa a despontar, uma se retrai no sofá, acuada; a outra se curva para a frente, alerta. Essas diferenças mantêm a dupla em equilíbrio, confrontando o papo de maluco do dono da casa, até que chega o ponto de ruptura. A partilha da mesma fé deixa de ser suficiente quando o importante não é mais a crença em si, mas sim o caminho até ela. Afinal, em um rebanho, todas as ovelhas cruzam o mesmo pasto, mas algumas saltitam sem esforço e outras precisam ser pastoreadas a cada passo dado. Reed entende de ovelhas e sabe o que deve fazer para cuidar de seu aprisco.
Terror religioso é um subgênero muito diverso. Às vezes, ele é estrondosamente construído em torno de possessões, cultos e demônios. Em outras, para o filme funcionar, basta o exercício da maiêutica. Na verdade, quando Herege deixa de ser focado no diálogo e passa a explorar outros elementos, ele perde força. Há um pequeno excesso de didatismo e de literalidade. Ainda assim, recebemos um final intrigante, que deixa espaço tanto para crer quanto para não crer, bem como para questionar tudo isso de novo e de novo.
O filme estreará em 20 de novembro nos cinemas brasileiros.
HERETIC
2024 | EUA | 111 min.
Direção: Scott Beck & Bryan Woods
Roteiro: Scott Beck & Bryan Woods
Elenco: Hugh Grant, Sophie Thatcher, Chloe East
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