[Crítica] 'Emilia Pérez' é uma fantasia intransigente
Atualizado: 22 de nov.
2024 não tem sido exatamente um ano vibrante para os musicais. O gênero parece estar na UTI, moribundo e surrado. Carcomido pelos vermes de olhares atravessados que procuram o próximo Funko Pop de universos cinematográficos para chamar de “seu”. Mas as trombetas já estão tocando há um tempo, ainda que só agora suas notas desafinadas estejam chegando aos ouvidos em arranjos envergonhados que tentam avisar “lá vem mais um musical feito para quem não gosta de musicais”.
Isso porque o musical vem sendo usado mais como um adorno, uma roupa que se veste sem honra. Com cada vez menos filmes dispostos a explorar as possibilidades que a cantoria genuína pode proporcionar. Ao invés disso, vemos uma tentativa de atenuar a forma, seja com adaptações que subtraem elementos essenciais ou com ajustes que tentam evitar a grandiosidade dos números de canto e dança em favor de algo mais palatável à geração TikToker. Por um lado, Meninas Malvadas (2024), que cortou 50% do material original e rearranjou suas músicas para serem “menos Broadway” — palavras dos próprios diretores. O resultado são números de seis minutos se transformando em pequenos interlúdios tímidos de um minuto e meio. Coringa: Delírio a Dois (2024) sofre (dentre muitos males) do mesmo problema: são cenas e mais cenas constrangedoras em que a música pede licença, a câmera se afasta e as notas aparecem, encabuladas. Há também a adaptação um pouco mais orgulhosa sobre uma certa bruxa verde, mas que mergulha nessa estética de live action do “estúdio do rato”, se segurando para não se perder demais no fantasioso, com seu filtro sépia e cores dessaturadas, com contrastes nulos e flares opacos que deixam qualquer visual desinteressante e morto — afinal, o público precisa levar isso a sério.
Difícil entender o ímpeto de produzir um musical sem abraçar o gênero, que já foi um dos maiores do cinema. A morte do musical, para mim, representa, em parte, a morte do próprio cinema. A "magia do cinema" está intimamente ligada ao que ele simboliza: esses universos lúdicos onde tudo é possível. Não há nada mais mágico e romântico do que a ideia de ver toda a extensão de uma vida sob a ótica da arte. A resistência a esses universos, porém, é resultado do ceticismo de um público que se acostumou ao utilitarismo narrativo, à estética heteronormativa lavada de produções mainstream e, acima de tudo, ao espírito de tio “começou a mentirada”.
“Eu não entendo as pessoas começarem a cantar e dançar do nada!”, é um argumento comum nessa linha de raciocínio. Perdão, hater de musical hipotético, mas essa introdução, talvez um pouco longa e amarga, nasce a partir de um incômodo que tem sido crescente nos últimos anos — e também porque, ao assistir a Emilia Pérez (2024), não consegui parar de pensar: acho que este é o primeiro musical de verdade que vi em um bom tempo.
O filme de Jacques Audiard (um francês retratando a cultura latinoamericana? Mas que boa ideia!) é, para dizer o mínimo, uma experiência desconcertante. Em um México saído dos flashbacks de Breaking Bad, conhecemos Rita (Zoë Saldaña), uma mulher que trabalha como advogada em uma agência que lava dinheiro do narcotráfico. Para sobreviver, ela ajuda um chefe de cartel a simular a própria morte, numa tentativa de finalmente se libertar e se tornar quem realmente é: a títular Emilia Pérez (Karla Sofía Gascón). A descrição pode parecer estranha, eu sei, mas fique comigo. Anos depois, as coisas tomam outro rumo: agora desesperada, Emilia tenta reencontrar seus filhos e ex-esposa, uma viúva alucinada (Selena Gomez e seu espanhol incompreensível).
A proposta musical de Emilia Pérez é estranha em seus momentos mais palatáveis. Audiard não se limita a uma sonoridade tradicional do gênero. Ao invés disso, a produção mergulha no contemporâneo, indo do rap ao pop experimental, mas sem perder a essência dramática daquelas baladas melodramáticas deliciosas. Os números desafiam forma e narrativa. Eles não soam como pausas, mas momentos de transgressão e rupturas do véu de realidade do filme. Quando os personagens cantam, o longa cresce, se dobra, descola do mundo, entrando em uma estética de videoclipe da MTV, mas de maneira surpreendentemente eficiente e natural, mesmo com os exageros que já viraram piada no Twitter por sua estranheza. Para todos os efeitos, o filme é meio Andrew Lloyd Webber das ideias. Nesse aspecto, Emilia Pérez me fez lembrar um pouco da adaptação de Evita (1996), de Alan Parker, mais especificamente daqueles momentos quase documentais de revoltas e massacres ornados com músicas grandiosas atoladas de coro.
Audiard constrói, ou melhor, estabelece com tanta confiança um universo particular de metamorfoses radicais através da junção inusitada de tons e categorias para que, assim, suas personagens também consigam enxergar e agenciar suas próprias transformações pessoais. O mundo em que elas vivem é ríspido, violento, masculino. Suas frustrações, anseios e delírios são exponenciados através de epifanias musicais não apenas para si, mas entre si. A dicotomia desses dilemas internos sendo exacerbados em tela, corpo e movimento com tamanha intensidade e teatralidade é também um grito de socorro por comunicação e compreensão. Portanto, o musical — não como ferramenta, mas como gênero narrativo — se torna imprescindível para contar essas histórias, afinal, é só através dele que podemos encontrar uma harmonia em meio à cacofonia visceral dessas existências.
Entrando no campo das polêmicas… A representação da personagem de Emilia é uma clássica jornada de morte, renascimento e santificação (com direito às “virtudes heroicas”, beatificação e até canonização). Sua busca para remediar os erros do passado e da vida criminosa que ela atrelava à sua identidade morta a leva a um caminho onde seu objetivo é virar uma força transformadora, ao invés de destrutiva. Essa é uma temática recorrente dentro do filme e das canções. “Mudar o corpo muda a sociedade”, canta Rita em um número; enquanto Emilia sempre reforça como o apoio da advogada foi um agente de mudança cataclísmica na vida de todos. No entanto, tais questões de identidade de gênero soam por vezes um pouco ásperas e antiquadas, mesmo que Audiard demonstre certa preocupação (ou desespero?) para entendê-las. O filme passeia por territórios complexos e delicados, sem saber o todo do que está falando, e sempre flertando com uma estética quase "esotérica" de identidades queer e latinoamericanas — um retrato mais clínico de uma transformação pessoal que, paradoxalmente, se encaixa na narrativa religiosa que o filme acaba escolhendo seguir.
Isso a torna uma obra distante das sensibilidades atuais, o que deve causar um incômodo justificado. Curiosamente, essa falta de tato parece alinhá-la com exemplares do New Queer Cinema dos anos 1990. A abordagem bruta do filme faz sentido dentro do que ele busca ser; uma fantasia intransigente.
Emilia Pérez não é fácil de engolir, e muitas vezes beira o absurdo, tanto no que se refere à construção de personagens quanto na maneira como cai em um “nonsense visceral”. Mas com curiosidade e falta de vergonha ímpar, o filme cria uma experiência única, daquelas que custam a sair da cabeça. Bom ou ruim é outro assunto, certo é estar fadado a ficar semanas pensando nas birutices desse projeto. Principalmente em uma era em que musicais parecem estar com vergonha da própria pele, e filmes LBGTQ+ tendendo a abandonar seu viés queer para se adequar ao status quo. Em meio a tanto (ou, tão pouco), Emilia Pérez se ergue quase como um manifesto punk, abraçando o potencial radical do gênero. E, por mais desconfortável que isso possa ser, é fascinante demais para ser ignorado.
EMILIA PÉREZ
2024 | EUA | 2h10min.
Direção: Jacques Audiard
Roteiro: Jacques Audiard & Thomas Bidegain
Elenco: Karla Sofia Gascón, Zoe Saldaña, Selena Gomez, Adriana Paz e Édgar Ramírez.