[Crítica] O Brutalista: a grandeza não consegue evitar a feiura

O brutalismo é um movimento arquitetônico familiar a todo brasileiro. Se você já foi resolver pepino em algum prédio público neste país, provavelmente se deparou com grandes construções de concreto aparente, com ângulos cortantes e curvas imponentes. O exterior de prefeituras, fóruns e universidades com formas geométricas maciças contrasta com seu interior frouxo, marcado por paredes divisórias de PVC e cinzeiros antigos ainda espalhados pelo chão, usados hoje como lixeira, já que não se pode mais fumar nesses locais. Talvez O Brutalista (2024), dirigido por Brady Corbet, possa ser descrito dessa forma: uma construção monumental que, ao ser adentrada, pouco impressiona.
A obra é erguida em torno de László Tóth (Adrien Brody), arquiteto húngaro que migra para os Estados Unidos após sobreviver a um campo de concentração na Segunda Guerra. Separado de sua família, Tóth chega em Nova York em um navio abarrotado, com esperança no sonho americano. Em um presságio sobre a realidade desse sonho, a Estátua da Liberdade aparece subitamente, de cabeça para baixo, em um plano torto. A imagem, que tem sido amplamente utilizada na divulgação do filme, é celebrada por um Tóth cansado, mas confiante.

Contudo, a vida não se transforma apenas com um atravessar de oceano. Além de lidar com a ausência de sua esposa Erzsébet (Felicity Jones) e sua sobrinha Zsófia (Raffey Cassidy), ainda presas na Europa, as oportunidades que aparecem no caminho de Tóth são diferentes do esperado. Acompanhamos um homem frustrado e perdido, embora carregue consigo uma ansiedade para colocar sua vocação em prática novamente. Sua vida seria inerte se não coexistissem, dentro dele, duas forças elementares: a paixão pelo belo e a aversão pelo feio. Na falta da beleza, o que o movimenta é a repulsa.
O título dado a essa primeira parte é The Enigma of Arrival, ou O Enigma da Chegada. Esse é também o título de um livro publicado em 1987 por V. S. Naipaul, em que acompanhamos as reflexões do próprio autor a respeito de suas mudanças, saindo de Trindade e Tobago e indo para os Estados Unidos, depois para a Inglaterra. O livro é introspectivo, mostrando as percepções de Naipaul sobre os lugares e as pessoas pelos quais passa. Nesse sentido, toda chegada é um enigma. Forasteiros como Tóth e Naipaul são tipos difíceis: querem se integrar, mas não se deixam esquecer que estão longe de suas origens, em locais que não compreendem suas origens e cujas origens não conseguem compreender.

Enquanto isso, em algum lugar da Pensilvânia, Tóth é contratado por Harry Lee (Joe Alwyn) para reformar o escritório de seu pai, o executivo Harrison Lee Van Buren (Guy Pierce), que se interessa pelo arquiteto de ares simples. Quer dizer que um pobre imigrante imundo era, em sua terra natal, um grande arquiteto? O fascínio com a história de Tóth, bem como com suas obras construídas em sua vida passada, fazem com que Van Buren decida contratá-lo para algo que enfim fazia jus à ambição do húngaro. A terra das oportunidades tinha oferecido pouco a ele, mas agora surgia um caminho em que tudo o que ele mais queria era possível: uma nova construção extraordinária, sua primeira após a Guerra; e sua família perto de si.
A metade inicial do filme termina em um tom otimista, com Tóth e sua equipe trabalhando a todo vapor para trazer ao mundo o projeto mais impressionante de suas vidas. O livro de Naipaul também fica, eventualmente, mais feliz: ele rejeita o conceito de decadência e o substitui pelo da mudança. É preciso viver a entropia, não lamentar as transformações que nos atravessam. Seguimos o fluxo, como dizem os (não tão) jovens.
Enquanto observamos a tela da intermissão, somos convidados a pensar no que vimos. É possível refletir sobre a ideia de lugar, essa palavra que significa tanto um local qualquer quanto o local certo, onde se deve estar – onde se quer estar. E a forma de transformar um lugar sem significado no lugar exato é por meio da intervenção humana. A diferença entre a decadência e a mudança, afinal, é a maneira como nos apropriamos de eventos e lugares que surgem para nós. E a arquitetura não é, por excelência, a arte que permite que organizemos espaços para nos inserirmos neles?

Com exceção de uma coisinha suspeita aqui e outra ali, O Brutalista parece ser de fato um bom filme. Finda-se a intermissão e começa a segunda parte da epopeia, em que em dado momento literalmente vemos um trem descarrilhar. É muito metalinguístico.
O título dessa nova parte é The Hard Core of Beauty, ou o Núcleo Duro da Beleza. Essa expressão foi utilizada em um ensaio de Peter Zumthor, grande arquiteto contemporâneo, para falar sobre como a beleza na arquitetura não se concentra na estética da superfície, mas sim na essência dos materiais, na experiência sensorial dos espaços e na autenticidade da construção. De acordo com ele, o mais importante na arquitetura é o despertar de um sentimento profundo causado pela interação entre matéria, luz e tempo.
É lindo pensar nisso, nessa abordagem em que o minimalismo não remete ao modismo antisséptico da mansão de Kim Kardashian, mas sim à simplicidade serena, em que a vida tem lugar para florescer em meio aos elementos da construção. A atmosfera envolvente proposta por Zumthor, porém, não é o que o filme nos mostra. A segunda metade de O Brutalista é uma bagunça, com temas trabalhados pela metade, cenas meio desconexas e uso de recursos com shock value que desagradam em vez de aproximar. Incluo nisso o fato de que o filme se assume sionista, escancarando a ideologia que já vinha aparecendo de forma amena na primeira parte.
A feiura, na obra, é combatida por ser aquilo que impede que os espaços sejam sentidos em sua essência, mas o filme faz isso consigo mesmo ao preencher materiais nobres com conteúdo barato. Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que existem paredes de drywall em meio ao concreto. É uma contradição utilizar inteligência artificial para dar refinar aspectos de uma história focada na paixão humana pela criatividade. De acordo com Corbet e o editor Dávid Jancsó, o uso da IA foi bem pontual, para auxiliar na criação de croquis feitos por Tóth e aprimorar as falas em húngaro de Adrien Brody e Felicity Jones, e foi essencial para que a produção fosse exequível. Ainda assim, é desconfortável assistir ao filme com isso em mente.

Sistemas de IA operam a partir de reconhecimento e classificação de padrões, gerando resultados a partir de previsibilidade. No cinema e na arquitetura, as coisas são tudo, menos previsíveis – ao menos deveriam ser – porque ambos contam histórias que só fazem sentido a partir da subjetividade. Há um aspecto intangível no olhar humano, assim como em seu toque, que transcendem o cálculo. Sim, o uso da IA foi pequeno, mas existe um limite de tolerância para sua intervenção nas artes? A partir de qual momento a IA deixa de ser instrumento e passa a ser criadora? Será que aceitá-la como instrumento não é um primeiro passo perigoso? Brody e Jones estão concorrendo ao Oscar como melhor ator e melhor atriz coadjuvante, por performances que, certamente, continuariam a ser excelentes mesmo sem o pequeno auxílio da IA. Isso é justo?
É inevitável traçar um paralelo entre o cinema e a arquitetura – especialmente aquele cinema e aquela arquitetura. São três horas e trinta e cinco minutos gravados, em sua maioria, em VistaVision. Trata-se de um formato de filme desenvolvido em 1954 para melhorar a qualidade da imagem em telas grandes. Diferentemente do padrão analógico do filme de 35mm, que passa o filme verticalmente pela câmera, o VistaVision segue o sentido horizontal, expondo um quadro maior por fotograma. Isso significa mais detalhamento, menos granulação e melhor resolução. O diretor de fotografia do filme, Lol Crawley, explicou que essa decisão foi tomada porque a fotografia arquitetônica pede técnicas que preservam as características das construções da melhor forma possível, mitigando distorções de ângulos e formas.
O uso deliberado de uma tecnologia que não é apenas retrô, mas sobretudo obsoleta, reitera a mania de grandeza que serve de fio condutor para O Brutalista. Não basta que o filme seja bem recepcionado: é preciso que crítica e público saiam deslumbrados do cinema. Cada escolha criativa deve comover, revelando a erudição do projeto, e a história por trás das câmeras deve ser tão impactante quanto a que está na tela. Ao mesmo tempo em que a captação foi feita de maneira tão charmosa, a todo momento rumina a lembrança de que alguns aspectos daquele corte final foram implementados por uma tecnologia sem alma.

Especialmente a partir da segunda parte, a forma como as relações são trabalhadas é estranha. O mecenato estabelecido entre Van Buren e Tóth, que seria uma ótima representação da morte do sonho americano e da construção de um sonho próprio, acaba desandando para uma confusão entre literalidade e simbologias que aniquilam qualquer reflexão posterior. Encaramos o clássico dilema do artista como executor de ideias que não são suas, e ele nos encara de volta enquanto soluciona isso com uma história confusa, como se tentasse disfarçar o fato de que grande parte da solução de todo o conflito, como o epílogo confirma, está em Israel. Sem o mínimo de nuance, sem menção ao povo palestino, sem nem reconhecer brevemente que a região passa por conflitos, para tentar ser imparcial. Reconhecer a dor do Holocausto, mas não a violência infligida ao Estado Palestino, é uma incoerência que não consegue passar despercebida.
A técnica cinematográfica impecável, banhada no ocre e no cinza, ecoa o peso do design brutalista, sem balaústres, sem boiserie. O som e a trilha são intrigantes e originais. É uma beleza em grande escala, que se amplia pela solidez de suas formas simples, mas o resultado final é feio. Fique à vontade para entrar e apreciar a obra, mas cuidado com as rachaduras no teto: elas não vão aguentar por muito tempo.

O BRUTALISTA
2024 | EUA | 3h 35m
Direção: Brady Corbet
Roteiro: Brady Corbet e Mona Fastvold
Elenco: Adrien Brody, Felicity Jones, Guy Pearce, Joe Alwyn, Raffey Cassidy, Stacy Martin, Emma Laird, Isaach de Bankolé e Alessandro Nivola
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