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Foto do escritorYuri Cesar Lima Correa

[Crítica] Batem à Porta, mas os gays não atendem



Plano, caminho, destino, sina, determinismo, probabilidade matemática. Seja como queira chamar, a inevitabilidade e suas implicações filosóficas nunca foram estranhas à filmografia do cineasta M. Night Shyamalan. Em Corpo Fechado (2000), Elijah (Samuel L. Jackson) acredita que não há escolha: ele e David (Bruce Willis) nasceram para ser antagonistas. Em Sinais (2002), Graham (Mel Gibson) acredita que seu filho estava destinado a ter asma e que seu irmão estava fadado a ter perdido a chance de ser um grande jogador de beisebol, pois são estes elementos que acabam salvando a vida do menino. Em A Dama na Água (2006), cada personagem descobre ter um papel importante no destino de Story (Bryce Dallas Howard). E em Tempo (2021), bom, Shyamalan é bem literal ao ilustrar o fim que não podemos evitar. Agora trazendo a discussão para dentro de uma alegoria inescapavelmente bíblica, Batem à Porta (2023) acaba assumindo por tabela que o tal “plano, destino, sina etc.” tem um dono, um auteur. Quem? Deus, claro. Fator instigante, uma vez que a história é protagonizada por um casal homossexual e sua filha adotiva; configuração familiar famosamente conhecida por causar o desagrado do “cara lá de cima”.


Como a bichinha homossexual que sou, nunca me senti muito incluso nesse “plano” do Papai do Céu. Aliás, tudo construído em torno dos seus dizeres, me parece algo que deveria evitar — para não dizer atacar e refazer. Então, se quatro pessoas armadas aparecem na porta da minha cabana no meio das férias de verão dizendo que preciso fazer um grande sacrifício em nome do “bem maior”, tal qual Eric (Jonathan Groff) e Andrew (Ben Aldrige) eu também ficaria revoltado. Não só pela intrusão e ameaça à vida de meus familiares, mas principalmente pela afronta. Porra, depois de dois mil e lá vai pedrada anos de exclusão e condenação, Javé resolve incluir gays no seu grande plano inefável com uma tarefa Abraâmica? Pois tome no olho de seu cu celestial; ou é assim que se sentem Eric e Andrew quando Leonard (Dave Bautista) e outras três pessoas armadas batem à porta da cabana que o casal alugou para passar as férias com a filha adotiva Wen (Kristen Cui). Segundo o quarteto, a família precisa fazer uma escolha impossível: um deles deve ser sacrificado, caso contrário, o mundo vai acabar.



Baseado no livro O Chalé no Fim do Mundo, de Paul Tremblay, o filme de Shyamalan vai direto ao ponto e nos apresenta o que tem de melhor. “O conflito?” Pfff, não. Dave Bautista. Vivendo o melhor personagem de sua carreira até então, o grandalhão ex-lutador de MMA coloca o espectador em constante tensão ao contrastar seu gigantesco porte físico com maneiras muito doces, especialmente em relação à jovem Wen. Afinal, Leonard é professor de um time de crianças, e não consegue evitar sua natureza calma de educador mesmo quando precisa explicar coisas terríveis que parecem torturá-lo. Sabemos que ele não quer machucar ninguém, mas também que, se necessário, ele poderia. De fato, Bautista destaca-se por ser a mais complexa das figuras em tela, já que nem a família ameaçada e nem os demais invasores (um deles vivido com amargura por Rupert Grint, colaborador de Shyamalan na série Servant) fogem muito do superficial — ainda que os antagonistas tenham uma boa desculpa na trama para se comportarem como arquétipos. Mas tudo bem. É o tipo de história que nos envolve pela situação, e não pela profundidade dos personagens.


Tanto é que, desta vez, Shyamalan aplica sua prolixidade tão característica num debate puramente lógico sobre o impasse proposto pela premissa, ao invés de usá-lo como trampolim filosófico e existencialista, como costuma ser a regra em seus outros roteiros. Sim, as cartas estão na mesa, mas Eric e Andrew não estão no clima para discorrer sobre as implicações cósmicas daquela pataquada, e você também não estaria se estivesse amarrado numa cadeira com 4 estranhos armados na sua frente. A urgência da própria narrativa acaba aparando naturalmente os respiros filosóficos e levam os diálogos pro perigo imediato: o casal precisa “desmascarar” a crença dos invasores, invalidá-la, mostrar que a “missão” do quarteto não sobrevive se colocada sob escrutínio lógico. É sua única saída. E enquanto consegue sustentar essa dinâmica, Batem à Porta se desenrola como um excelente filme de câmara, restrito à sala da cabana e à discussão entre as partes — embora pontuado por flashbacks meio “nhé” mostrando coisas que já sabemos ou que poderíamos inferir sem a quebra de ritmo. Aliás, acredito eu que a atmosfera do projeto se beneficiaria de perder aquele power point explicando a motivação de Andrew para ter uma arma; os elementos estão lá, e imaginar a história por trás deles talvez fosse mais poderoso do que tê-la desenhada na minha fuça — algo que não atribuo à incompetência dos envolvidos, mas ao seu excesso de receios.


Isso porque Batem à Porta lida com dois medos evidentes: o primeiro, óbvio, é aquele diegético experimentado por Eric, Andrew e Wen; o segundo é o medo do próprio projeto de não ser compreendido. Ou melhor dizendo: de ser mal entendido. A grande “coincidência divina” que colocou um casal gay como escolhido por Deus para fazer o sacrifício que salvará a humanidade não é problemático apenas entre os personagens, convertendo-se numa preocupação do filme também. Sim, a princípio é levantada pelo roteiro a ambiguidade nas motivações dos quatro invasores. Afinal, teriam eles realmente recebido uma missão divina que, caso não cumprida, resultará no fim do mundo? Ou será que eles estão imersos num delírio coletivo que usam para justificar preconceitos internalizados? E, novamente, o filme funciona muito bem enquanto consegue sustentar essa questão. O problema é que, eventualmente, o longa abandona seus debates e os pontos de interrogação, substituindo-os por uma linearidade frustrante.



Veja, não digo que desgosto daquilo que é revelado no final. Não, muito pelo contrário, uma das coisas que mais admiro em Shyamalan é como ele assume seus conceitos e não foge deles por tangentes fáceis. Se vamos falar de alienígenas, então temos alienígenas de fato. Se vamos falar de mulheres mágicas que aparecem na piscina, então temos uma mulher mágica que aparece na piscina de fato (e por aí vai). Aqui não é diferente, e o que me frustra é, na verdade, como os personagens reagem aos eventos inusitados de maneira cartesiana, linear, conforme manda o gibi. Em outras palavras: seguindo o plano, o caminho, o destino, a sina, o determinado, a probabilidade matemática, seja como queira chamar. Com medo de soar problemático, o roteiro blinda seus personagens de escolhas difíceis. Todos acabam cumprindo exatamente o papel ao qual estavam “predestinados” — tanto na trama quanto na narrativa. E isso decorre de um medo óbvio que o filme tem de cair na mesma ambiguidade dos antagonistas, formando um paradoxo: ao tentar criar uma “boa representatividade” evitando decisões de complexidade emocional e psicológica, Batem à Porta acaba por entregar uma representação nula. Nos últimos quinze minutos, as escolhas de Eric e Andrew são imbuídas de tamanha corretude moral e ética frente ao dilema enfrentado, que soam fáceis, quase óbvias. Para não dizer desumanizantes, porque retiram deles o caráter da nuance, da dúvida, do medo. Não há mais riscos, então perde-se o peso do que acontece, e com ele vai embora também o envolvimento, a torcida e o investimento que o espectador fez naquelas figuras. Ou seja, na tentativa de se preservar, o roteiro acaba sacrificando seus gays.


Tão irônico quanto decepcionante, o caminho adotado por Shyamalan (que mudou o final do livro) escolhe, como de costume, a filosofia do destino; ignorando que quem inventou essa tal de inevitabilidade, jamais considerou no seu “plano” os viadinhos. A linearidade é a coisa menos queer que se pode fazer com um personagem LGBTQIA+, especialmente numa escolha de Sofia dessas — e repare que escolhi uma referência com Meryl Streep ao invés de recorrer ao imaginário bíblico de novo, porque precisava desesperadamente enfiar alguma coisa gay nesse texto, já que o filme certamente não tem.

 

KNOCK AT THE CABIN

2023 | EUA | 100 minutos

Direção: M. Night Shyamalan

Roteiro: M. Night Shyamalan

Elenco: Dave Bautista, Jonathan Groff, Ben Aldridge, Nikki Amuka-Bird, Kristen Cui, Abby Quinn, Rupert Grint


1 comentário

1 Comment


Eduardo CD
Eduardo CD
Jan 15

Que biba revoltadinha gente. Tadinha dessa frutinha estragada. DEUS é o culpado por vc ser essa aversão? Vai te lascar

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