[As Exploradoras] Doris Wishman faz filmes no inferno
Atualizado: 6 de set. de 2023
Considerado um cinema de baixo orçamento que busca atrair publico através de imitações baratas de temas do momento, sexo e violência, o exploitation é um dos gêneros mais prolíficos do cinema, influenciando artistas atuais como Quentin Tarantino, Eli Roth, Gaspar Noé, irmãs Soska, Robert Rodriguez e John Waters. Em meio a sua vastidão, o exploitation quase sempre foi visto como um tipo de cinema feito por homens e para homens, porém é notável que algumas mulheres conseguiram adentrar esse campo e criar carreiras nele, colocando suas sensibilidades sobre o momento e alguns casos subvertendo o que se espera desses filmes. As Exploradoras é uma série de textos mensais do Esqueletos no Armário que pretende comentar sobre a vida e a obra de diretoras que trabalharam com o exploitation. Esperamos fazer jus à filmografia dessas artistas tão especiais.
Em seu texto sobre a diretora de sexploitation Doris Wishman, a crítica e ensaísta Elena Gorfinkel descreve uma situação que descreve muito bem o local que a diretora ocupava na cultura americana:
Em 2002, o popular programa de entrevistas de Conan O’Brien recebia o crítico de cinema Roger Ebert quando o apresentador chama o segundo convidado da noite. Descrevendo como “um convidado que ao longo de décadas escreveu e dirigiu dezenas de filmes, incluindo o clássico Deadly Weapons”, O’Brien convoca Doris Wishman para subir no palco. Entra em cena uma pequena senhora usando roupa com estampa de onça que se senta ao lado do apresentador; Wishman nesse momento já tem noventa anos. Em meio à típicas piadas quebra-gelo de talk show, Wishman se descreve como uma “mean lady”, diz que primeiro pensa nos títulos, que seus filmes nascem disso e que ela estava promovendo um novo trabalho. Quando perguntada qual o nome do filme ela se contorce na cadeira e então diz: Dildo Heaven. A plateia aplaude fortemente.
Essa curta entrevista de menos de dez minutos é um dos últimos registros de Wishman, a diretora viria a falecer poucos meses depois dessa aparição, e diz muito sobre a imagem dela na época. Doris é colocada no local de diretora cult, Roger Ebert comenta sobre ter visto seus filmes e faz um comentário pertinente sobre seu estilo de filmagem e outro nem tanto sobre o tamanho dos peitos de Chesty Morgan, mas o tom geral é de curiosidade sobre essa “senhora peculiar”, que faz filmes que não se esperam de pessoas como ela. Conan O’Brien não esconde desconforto em momentos (ou pelo menos o performa para fins cômicos) e nem que ela está ali mais como uma curiosidade para o público do que propriamente para ser vista como uma artista séria. Doris Wishman se mostra bem ciente disso e parece se divertir, mas também se mostra incomodada com o fim súbito da entrevista.
Nos anos 90, Doris Wishman viu um ressurgimento de popularidade graças ao lançamento de varios de seus filmes em VHS, dando a ela uma aura de figura cult que a estimulou a sair da sua aposentadoria (não dirigia mais desde 1983) e que lhe permitiu ver sua obra sendo homenageada em festivais underground pelos Estados Unidos. Um de seus maiores fãs é ninguém menos do que John Waters, que chegou a incluir uma cena de Deadly Weapons em Mamãe é de Morte (1994). A curiosidade em torno da obra de Wishman aumentou ainda mais desde então, tanto por parte de acadêmicos quanto por parte de cinéfilos, duvido que num passado não muito distante alguém pensou que hoje seria possível encontrar seus filmes em blu-ray ou em mostras em streamings como a MUBI ou o Criterion Channel. Em 2021, foi lançado ReFocus: The Films of Doris Wishman, uma coletânea de ensaios e artigos focados apenas na obra da diretora (e que foram a principal fonte para este humilde texto, os principais artigos usados estão referenciados no final do post).
Afinal, o que tem de tão chamativo no trabalho de Doris Wishman? Primeiramente o fator histórico: Wishman foi uma das poucas mulheres a trabalharem na direção de filmes exploitation/sexploitation em seu auge. Com uma obra de cerca de trinta filmes, Wishman é uma figura quase única na história do exploitation (e do cinema como um todo), olhar para a sua filmografia é como olhar para a história do cinema exploitation. Sua carreira começou com filmes nudie-cutie nos anos 50 e 60, migrou para os roughies nos anos 60, pro sexploitation nos 70, dirigiu dois filmes pornôs durante o auge do porno chic (filmes que sempre renegou e aparentemente a envergonhavam) e nos anos 80 tentou migrar para o mainstream sem sucesso com a sua tentativa de slasher A Night to Dismember (1983). Por ter uma obra tão envolvida com o erotismo e com o softcore, ela acabou trabalhando com figuras bem curiosas e marcantes do ramo como a artista burlesca Chesty Morgan, os astros pornôs Harry Reems (protagonista de Garganta Profunda e vários outros filmes da era porno chic), Samantha Fox (de filmes como Jack n Jill, Devil in Miss Jones 2 e Roomates) e Robert Kerman (ator com uma longa carreira pornográfica, mas que ficou internacionalmente famoso por ser o protagonista do clássico do terror Cannibal Holocaust).
Mas é importante pensar em Wishman para além de apenas uma anedota. Seus filmes tem um forte valor camp que sem dúvidas é um dos seus maiores atrativos, mas o que fica com o espectador ao final é a direção caótica da diretora. Seus filmes não eram filmados com som direto, mas sim dublados na pós produção, para tentar “esconder” e evitar mostrar momentos dos lábios dos atores se mexendo a diretora corta cenas de diálogo com closes aleatórios nos pés dos atores ou em partes do cenário, super closes e desfoques. Isso casado com o fato dela usar o seu próprio apartamento como cenário para locais diferentes (às vezes uma discoteca, às vezes um consultório médico, às vezes um hospital, às vezes um quarto de hotel etc), com as cores fortes dos seus filmes coloridos e com as tramas que parecem saídas direto de uma revista pulp acaba gerando uma experiência que beira o surreal em vários momentos. Se por muito tempo Doris Wishman foi vista como um exemplo de “tão ruim que é bom”, nos últimos anos começou a emergir uma movimentação para vê-la como uma autora do cinema exploitation assim como figuras já consagradas como Russ Meyer.
Fãs e acadêmicos leem as características marcantes da sua obra não como um sinal de incompetência da diretora, mas como o principal diferencial desta. O seu trabalho permite comparações com cinema experimental. A autora Hannah Greenberg, por exemplo, a compara com os feitos da diretora feminista avant-gard Carolee Schneemann. A forma como o corpo é uma obsessão nas suas obras é um prato cheio para leituras feministas e queer. Nos filmes de Wishman o corpo pode ser uma arma (Deadly Weapons), uma câmera (Double Agent 73), pode ser moldado numa mesa de cirurgia (Amazing Transplant e Let Me Die a Woman), ser controlado por uma boneca na mão de um sádico (Indecent Desires), ser fonte de prazer e de dor.
Todos nascemos nus: começo de carreira e Nudie-Cuties
Doris Wishman começou sua carreira no cinema aos 40 anos (existem dúvidas em relação a sua data de nascimento, mas uma das especulações é de que tenha nascido em 1912). Naquele ponto ela já tinha trabalhado como atriz de teatro e se envolvido com distribuição, mas o estopim para a sua entrada na direção de longas foi a morte do seu primeiro marido, dirigir se tornou uma válvula de escape para lidar com a sua perda. Tentando aprender de forma autodidata e com dinheiro emprestado da irmã, Wishman dirigiu seu primeiro filme: Hideout in the Sun (1960), um filme sobre nudismo.
Filmes sobre campos de nudismo eram uma moda durante as décadas de 50 e 60 por serem uma forma de driblar a censura e usar o pretexto do formato documental para mostrar nudez. Apelidados de "Nudie-Cuties", esses filmes pouco a pouco foram abrindo mão do formato puramente documental e abraçando a ficção em histórias no geral bem simples, com o único objetivo de mostrar nudez (sim, apenas a feminina na maioria dos casos). Apesar da ausência de roupas, esses filmes eram surpreendentemente dessexualizados e inocentes, se contentando em mostrar os atores praticando esportes ao ar livre, tocando violão e realizando afazeres. Na primeira porção da década de 60, Wishman, mesmo sem nenhuma formação, dirigiu oito filmes do gênero: Hideout in the Sun (1960), Nude on the Moon (1961), Diary of a Nudist (1961), Blaze Starr Goes Nudist (1962), Gentleman Prefer Nature Girls (1963), Playgirls Internacional (1963), Behind the Nudist Curtain (1964) e The Prince and the Nature Girl (1964). Todos esses filmes filmados na Flórida, com as fortes cores do Technicolor e como vários outros cineastas exploitation e de filmes B, Wishman reutiliza cenas de outros de seus filmes em vários momentos. Em seu artigo sobre a diretora, Karen Joan Kohoutek comenta sobre como às vezes seus filmes nudie-cuties fugiam do padrão por terem histórias mais complexas do que se esperava do gênero. Um exemplo pode ser a trama de assalto ao banco de Hideout in the Sun e a trama espacial de Nude on the Moon, o filme que provavelmente é o seu mais conhecido dessa fase.
Em Nude on the Moon (1961), dois cientistas homens constroem um foguete com o objetivo de provarem a sua capacidade e assim conseguirem fundos do governo para futuras experiências espaciais. Para testar, eles viajam até a lua e descobrem que lá, ao invés de apenas areia e pedras, existe uma colônia de nudismo com uma sociedade matriarcal. Os cientistas se maravilham com o lugar e com o quão bem recepcionados são, um deles em especial se apaixona pela rainha do lugar, mas se veem obrigados a voltar para Terra. O filme é sem dúvidas adorável, as atividades de nudismo num parque de pedras que é um ponto turístico na Flórida tem uma inocência que é aumentada pelo detalhe de todos os nudistas lunares estarem usando arquinhos com antenas. Karen Joan Kohoutek aponta algo interessante no filme: um dos cientistas passa por uma jornada sentimental rara não apenas em filmes de nudismo, mas nos próprios filmes de ficção científica da época focados em exploração espacial.
O protagonista, ao se encontrar com a sociedade nudista utópica, retorna para casa e passa a ver o mundo de outra forma, inclusive vendo pela primeira vez o interesse de uma das cientistas que trabalha em seu laboratório (interpretada pela mesma atriz que faz a rainha lunar) e correspondendo a ele. Kohoutek aponta então para como no filme, o nudismo se torna uma revelação e um caminho de liberação sexual para os seus personagens tão certinhos.
Garotas Más Vão Para o Inferno! Doris Wishman e os roughies
Nos intensos anos 60, a censura se afrouxava e o exploitation começou a mudar radicalmente. A inocência dos nudie-cuties começou a dar espaço para os roughies: filmes com temáticas mais sórdidas, girando entorno de temas como estupro, vício, masoquismo, chantagem e violência. Não chega ao nível que, por exemplo, o exploitation dos anos 70 chegaria em relação à sangria e ao sexo, mas já é visível a mudança no tipo de conteúdo desses filmes. As obras de Wishman não ficaram para trás, nessa fase da sua carreira ela se mudou da ensolarada Flórida para Nova York e seus filmes ganharam um ar mais urbano e mais espinhosos (é nesses filmes também em que seu apartamento vira o cenário recorrente deles). Seus filmes deixaram o tom solar e inocente para falar de mulheres sendo controladas por bonecas (Indecent Desires) ou de personagens que perdem o emprego e se veem obrigadas a se prostituir para sustentar a família (Another Day Another Man). Em seu texto sobre a autora, Gorfinkel comenta como essa fase da sua obra é muito marcada por questões relativas a dinheiro e como isso afeta as mulheres. Mulheres que recorrem a prostituição para se sustentar, que estão em situação de fragilidade ou então em situação de dependencia por questões financeiras.
Dessa leva, que provavelmente é a sua mais famosa, dois filmes se destacam para mim por seu conteúdo queer: Bad Girls Go to Hell (1965) e A Taste of Her Flesh (1967).
Bad Girls Go to Hell começa com uma mulher acordando e sentindo desejos sexuais, mas recebe uma negativa do marido. Após fazer a faxina da casa, a protagonista vai botar o lixo para fora e é abusada pelo faxineiro do seu prédio. Durante o ato de violência, ela o mata e foge para Nova York. O que se tem então é a protagonista vagando por uma grande cidade e sendo alvo de diversas violências. A violência constantemente voltada para a protagonista não é capaz de diminuir os seus impulsos sexuais (que ela expressa sem vergonha), seu corpo não é apenas um objeto para o sofrimento e a dor, mas também para o prazer, que ela não cansa de buscar apesar de todo o trauma. É algo que chama a atenção no filme e abre possibilidades de leituras feministas, mas o mais marcante é um dos poucos momentos de paz que a personagem experimenta.
Nesse ponto, a protagonista abandona a casa em que estava hospedada antes, onde era vítima de violência pelo bêbado que morava lá e vai morar com uma mulher. A dona da casa logo se revela lésbica e as duas tem uma noite de amor, no que é a única cena de sexo consensual do filme. A cena de amor é filmada focando apenas nas pernas das personagens se entrelaçando, negando assim um olhar fetichista sobre a relação das duas. A bissexualidade da protagonista não é algo estigmatizado no filme e seu relacionamento com outra mulher se torna um momento de tranquilidade e paz em meio às desventuras da protagonista.
A Taste of Her Flesh é completamente delirante e precisa urgentemente ser redescoberto pela comunidade LGBT+. No filme vemos um casal lésbico sendo feito de refém em seu apartamento por dois terroristas que planejam usar a localização para cometer um assassinato político. Feito pouco depois do assassinato de Kennedy, A Taste of Her Flesh preenche a sua curta duração com longas cenas de banho, ameaças dos terroristas e delírios em que os personagens sonham que estão com os gêneros trocados gerando momentos com os atores vestidos de drag queen e king. A tradicional edição de Wishman que usa ângulos inusitados para evitar mostrar lábios se mexendo durante cenas de dialogo dá um ar ainda mais surreal para a experiência. Certamente não é uma boa porta de entrada para a obra da diretora, mas o tipo de coisa curiosa que merece ser conferida pelo menos uma vez. Se não pelos momentos curiosos, pelo tour no apartamento da diretora.
Armas Letais: as colaborações com Chesty Morgan
Se os anos 60 foi um momento de mudanças bruscas no cinema exploitation, os anos 70 definitivamente mudariam a indústria para sempre. Em 1972, foi lançado Garganta Profunda, o filme pornográfico que inaugurou o que ficou conhecido como a era do porno chic, os limites em relação ao que podia ser mostrado em tela mudaram e o patamar a se atingir para chocar, excitar e atrair o público se tornaram altíssimos. John Waters chegou a descrever o nascimento da indústria pornográfica e do porno chic como o momento em que o exploitation morreu. É nesse cenário que Doris Wishman faz sua parceria que ficaria mais conhecida: os filmes que fez com a artista burlesca Chesty Morgan.
Chesty Morgan era o nome artístico de Liliana Wilczkowska, uma imigrante polonesa que ainda criança fugiu para Israel para escapar da segunda guerra mundial (Chesty era de descendência judia e seus pais já tinham sido mortos pelos nazistas). Nos anos 50, ela se muda para os Estados Unidos e na década de 70 começa a trabalhar como stripper e dançarina burlesca. É impossível se falar de Chesty Morgan sem comentar a razão pela qual ela se tornou tão famosa e icônica (o seu próprio nome artístico é uma piada com isso): Morgan tinha um busto de 73 polegadas — ou aproximadamente 186cm.
A parceria das duas giram em torno de fazer de Chesty um gimmick. Lançado em 1974, em Deadly Weapons Chesty faz uma mulher que quer se vingar do assassinato do seu marido. Para isso ela persegue cada um dos mafiosos envolvidos (um deles interpretado por Harry Reems que está mais lindo do que nunca aqui) e sufoca eles até a morte com seus peitos. Uma história simples e direta que usa o seu fiapo de narrativa apenas como desculpa para mostrar os seios da atriz. O outro filme dessa parceria é Double Agent 73 (uma piada com as medidas da atriz), onde uma agente secreta tem a missão de desmontar uma quadrilha ligada a tráfico de heroína, para isso ela tem uma câmera instalada no peito e precisa botar ele pra fora e aperta-lo toda vez que quiser tirar uma foto. Nem um pouco prático, mas 100% no tom absurdo de aventura pulp barateira que o filme exala.
Para filmes com doses tão grandes de nudez, Deadly Weapons e Double Agent 73 são filmes surpreendentemente dessexualizados. A nudez aqui parece tão inocente quanto na época dos filmes de nudismo de Wishman, com o diferencial das tramas policiais rocambolescas. Doris Wishman descreveu trabalhar com Chesty como algo difícil, a atriz parece visivelmente desinteressada a maior parte do tempo e dublagem busca dar mais emoção para uma atuação bem inexpressiva. Mas Wishman não parece se importar muito com os dotes artísticos de Chesty. Vendo os filmes, a impressão que fica no final é que vimos mais closes nos decotes e nos peitos da atriz do que no seu rosto (algo que se encaixa como uma luva na tendência de Wishman de filmar partes do corpo aleatórias em cenas de diálogo).
Double Agent 73 e Deadly Weapons são sem dúvidas seus filmes mais referenciados. Roger Ebert comenta sobre eles com Doris na sua entrevista no Conan; o adolescente pervertido de Mamãe é de Morte (1994) os assiste enquanto tem a casa invadida; e já foram analisados pela teórica Elena Gorfinkel, que os lê através da lentes de análise de cinema feminista e do male gaze. Para além dos seus elementos pitorescos, os dois filmes são portas de entrada para a filmografia de Wishman justamente por conterem todos os elementos que a diferenciam (a montagem caótica, o apartamento da diretora servindo de cenário em vários momentos, as soluções visuais curiosas) e contar com a presença de Chesty que é colocada no filme quase como uma drag queen. Mesmo sendo uma mulher cis, Chesty Morgan tem os atributos femininos exagerados ao ponto da paródia, com a sua maquiagem forte, peruca artificial, saltos plataformas vermelhos em todas as cenas e a constante transformação do seu corpo (seja em câmera seja em arma).
Em um texto recente sobre os vinte anos da morte de Wishman, Gorfinkel descreve a fase da diretora nos anos 70 como marcada pela transformação da visão da diretora sobre o corpo. Segundo a autora, nessa década Wishman passa a retratar o corpo e a sexualidade de forma grotesca e constantemente desafiando o que é considerado desejável. Não atoa essa é a época em que ela faz dois filmes sobre peitos sendo transformados em armas e um sobre um transplante peniano que transforma um homem impotente num assassino (Amazing Transplant).
Corpos que se transformam: Let me Die a Woman
Em uma entrevista, Doris Wishman descreve Let Me Die a Woman como o filme mais estranho que ela já fez na sua carreira. A ideia veio de uma ligação com uma amiga que disse que estava trabalhando com pessoas transexuais, Wishman então pensou na ideia para o documentário e entrou em contato com um médico e pessoas que aceitassem serem entrevistadas.
Let Me Die a Woman é uma coletânea de testemunhos de pessoas trans falando sobre como se descobriram e quais eram seus sonhos, descrições médicas sobre cirurgias e dramatizações de momentos variados (como pessoas trans fazem sexo? O que acontece se uma pessoa não respeita o período de descanso médico e decide fazer sexo pouco depois da sua cirurgia de vaginoplastia?). Transgeneridade era um tema que despertava curiosidade no público por pelo menos uma década, filmes tentando lucrar em cima disso não faltaram, não vamos nos esquecer que o icónico Glen ou Glenda (1953) de Ed Wood nasceu assim.
O filme é provavelmente o mais polêmico da diretora e o mais fascinante. É inegável que Let Me Die a Woman é pensado numa plateia cis e suas curiosidades sobre “afinal… como é lá em baixo?”. Visto hoje, não deixa de ser incômodo o quanto o filme foca nas genitálias do seu elenco, com longas e frias descrições médicas sobre o desenvolvimento das genitálias e como elas ficam após a cirurgia (com cenas gráficas mostrando uma cirurgia real de redesignação de gênero). Ao mesmo tempo, o filme é permeado por um interesse genuíno pelos sentimentos e histórias dos entrevistados. Um homem relata que seus colegas de trabalho não sabem que ele é trans porque ele tem medo de perder o emprego; uma mulher relata seu passado na marinha e como ele permitiu que ela entrasse em contato com notícias sobre pessoas trans na Suécia; uma mulher trans latina comenta sobre a sua infância e como hoje se sente completa sendo quem é. O filme hoje é uma pequena cápsula do tempo que para pessoas LGBT+ é particularmente interessante por nos permitir ver pedaços de vivências trans nos anos 70.
O contraste do filme entre ser empático com os entrevistados e os tratar apenas como curiosidades para pessoas hetero-cis é algo que a própria Wishman sentia, na mesma entrevista que citei no começo do tópico ela diz que se sentia mal durante a produção por sentir que estava explorando seus entrevistados de algum forma. Ela comenta que ao final da produção, todos foram muito bem pagos e ficaram felizes de terem feito parte do filme.
Caindo aos pedaços: A Night to Dismember
Wishman chegou a dirigir alguns filmes pornográficos ao longo da década de 70 (Come With Me Darling e Satan Was a Lady), mas sempre os renegou e sentiu vergonha deles. Um dos seus últimos atos na década foi a tentativa de migrar para o cinema de horror mainstream com um filme slasher: A Night to Dismember. A produção começou na década de 70 mas o filme só veria a luz em 1980, após uma série de problemas. Mais da metade do filme foi perdida em um acidente, obrigando Wishman a refilmar parte dele sem os atores e tentando emendar de forma a fazer sentido. Também foram perdidas todas as gravações de áudio, fazendo que a única voz que escutamos ao longo do filme seja a de um narrador que está lá para dar algum sentido para a história — de forma um tanto inútil, diga-se de passagem.
O longa, estrelando Samantha Fox como protagonista num filme não pornográfico, conta a história de uma mulher cuja família tem um longo histórico de tragédias e doenças psiquiátricas. Assim que ela sai do hospício em que está internada há vários anos, visões estranhas começam a atormentá-la e misteriosos assassinatos começam a acontecer. Dadas as condições da produção, o filme é ainda mais caótico que a maioria dos trabalhos de Wishman, chegando a beirar o incompreensível em vários momentos. Isso não apenas matou o desejo da diretora de fazer algo mais popular, como também a fez abandonar a carreira de direção por quase uma década, tempo em que passou trabalhando em uma sex-shop na Flórida.
O filme porém passou por um processo de redescoberta junto com o restante da obra de Wishman. O caos exacerbado da produção querendo ou não também o tornou algo único e alçou o filme ao status de cult. Kier-la Janisse incluiu A Night to Dismember nos apêndices de seu livro House of Psychotic Women onde diz que “ainda que falho em todos os sentidos, é estranhamente divertido e a edição dadaísta de Wishman merece uma conferida”. Para fãs de slasher é certamente uma curiosidade imperdível, onde mais se vai ter a oportunidade ver um slasher que parece uma obra dadaísta ?
Fazendo filmes no inferno
Os anos 90 tiraram Doris Wishman de seu longo hiato. As locadoras, e especificamente a distribuidora de VHS e DVD Something Weird, deram uma sobre vida para a diretora que nem ela imaginava. Entre o seu novo séquito de fãs que surgia e mostras de cinema em sua homenagem, Wishman conseguiu dirigir mais alguns filmes antes de falecer: Dildo Heaven (2002), Satan Was a Lady (2001) e Each Time I Kill (esse completado e lançado apenas postumamente, em 2007). Gorfinkel escreve em seu texto que seu primeiro contato com a obra da diretora foi quando ela foi convidada a exibir A Night to Dismember em uma das aulas que frequentava na faculdade e se mostrou incomodada com os risos durante a projeção. Gorfinkel guardou para si essa imagem de Wishman como uma artista que fazia seu trabalho de forma extremamente séria.
O retorno do interesse por Wishman nos últimos anos é um bom momento para vermos ela mais do que como uma curiosidade, e sim como uma artista. Seus filmes tem um potencial camp enorme, são extremamente divertidos e por vezes inacreditáveis, mas isso não anula as possibilidades de analisar eles como obras de arte dignas de atenção. Com eles, Wishman criou um mundo onírico que permite aos seus personagens explorar a sexualidade e seus corpos, ela mostrou políticas sexuais com o seu olhar anárquico e criou uma obra baseado no seu caos muito único. Sua frase mais famosa e mais referenciada é de que ela continuaria fazendo filmes enquanto pudesse “e quando eu morrer farei filmes no inferno”. Os que tiverem oportunidade de ver os filmes que ela faz no além são muito sortudos, mas também somos por ter vários deles para ver por aqui.
REFERÊNCIAS
GORFINKEL, Elena. The Body as Apparatus: Doris Wishman’s Double Agent 73 (2021).
GORFINKEL, Elena. Who’s afraid of Doris Wishman? (2022). Disponível em:
GREENBERG, Hannah. Depicting Female Bodies: Doris Wishman, Carolee Schneemann and Legacies of Subversion (2021), do livro Refocus: The films of Doris Wishman (2021), de Alicia Kozma & Finley Freibert.
JANISSE, Kier-La. House of Psychotic Women (2012).
KOHOUTEK, Karen Joan. “It’s strange, but it’s wonderful”: Doris Wishman’s Nude on the Moon (2021). Do livro Refocus: The films of Doris Wishman (2021), de Alicia Kozma & Finley Freibert.
Uma delícia de texto. Eu acho tão interessante saber que em épocas tão remotas haviam pessoas desbravadoras, talentosas, ousadas. Hoje é tudo tão cínico e pasteurizado.