[48ª Mostra SP] 'Salão de Baile' é hospital, igreja, escola e quilombo
Atualizado: 25 de out.
Esse texto é parte da cobertura que o Esqueletos no Armário está fazendo da 48º Mostra Internacional de Cinema de São Paulo como veículo credenciado, dando enfoque na programação que tenha cruzamentos com o cinema de gênero, as temáticas queers e de sexualidade.
Ballroom é UPA, é igreja, é escola e quilombo, afirma uma das entrevistadas no documentário dirigido por Juru e Vitã, que a partir da cena fluminense, introduz e disseca a cultura dos ballrooms, contando suas origens, explicando a terminologia por trás das categorias de competição e o que caracteriza cada técnica. Abordagem essa que poderia resultar terrivelmente didática e aborrecida — a dupla de realizadoras tem consciência do risco que correram; na primeira sessão do filme na 48ª Mostra SP, compartilharam com o público que seu desejo inicial era apenas retratar o baile, sem depoimentos, narrações ou cartelas de texto (todos elementos que estão incorporados no corte final). E que bom que estão, pois assim, Salão de Baile (2024) mostra que os ballrooms vão além da experiência sensorial; eles possuem sentido, história, linguagem e metodologia. Configuram-se, portanto, como Cultura (com C maiúsculo) e, por consequência, como rota alternativa de vivência para pessoas LGBTQIAPN+.
Isso porque, como relembra o filme, essa vivência não começa e nem termina na pista. Junto com o movimento dos ballrooms vêm as “casas”, que são coletivos e famílias horizontais de pessoas trans e travestis (normalmente lideradas por uma “mãe”) que reproduzem as relações de afeto muitas vezes negadas a essas pessoas. No documentário, é a Casa de Alafia que convoca as demais casas da Baía de Guanabara para uma noite de música, dança e competição. Cada uma delas tem sua trajetória; aquela ali nasceu a partir de duas queens que não se gostavam, aquela outra a partir do brutal assassinato de uma mulher transexual. O projeto tem um cuidado especial ao retomar e salientar essas diferentes origens e características, pois um de seus objetivos verbalizados é evitar passar a impressão de que esses grupos são uma massa homogênea e coesa. Não são. Mais adiante, inclusive, podemos ver que existem rivalidades e tensões entre casas e personalidades. E ao ilustrar essa complexidade, Juru e Vitã sabotam uma apropriação idealizada do movimento que estão retratando, afastando a percepção errônea de que estão revelando uma utopia, pois entendem que essa higienização acaba sempre sendo cooptada e mercantilizada pelos mesmos sistemas de poder que impuseram a dissidência sobre essas corpas — sim, “corpas”, que é o termo que elas utilizam.
Aliás, as linguagens audiovisuais e verbais escolhidas pela dupla não apenas são coerentes de um ponto de vista estético, como nos interlúdios que se apropriam do minimalismo de cenários e do brilho e sensualidade nos figurinos, mas também pela negação a esse sistema de produção de sentidos do qual não se enxergam parte. Ou em uma colocação menos academicista: elas falam do jeito que falam, usando termos, gírias e ideias do seu próprio meio, sem cair na tentação de usar uma narração mais formal ou um ritmo típicos de documentários. O resultado não só é dinâmico, leve e divertido, mas repleto de potenciais, justamente por oferecer uma visão alternativa ao modo de se contar histórias. “Alternativa”, palavra que segue voltando a esse texto porque, afinal, não estamos simplesmente falando de representatividade, de um tijolo colorido colocado sobre uma parede que já foi construída torta, mas da elaboração de uma nova estrutura que talvez nem precise de tijolos.
A diferença entre um filme LGBT e um filme queer normalmente reside nessa questão; a recusa em fazer diferente a partir de um caminho com o qual nunca concordamos em seguir. Menos importa um filho gay bem aceito numa família tradicional do que a aniquilação do próprio modelo de família tradicional. Foi isso que fez Crystal LaBeija, por exemplo, como bem pontuado aqui em Salão de Baile. Mulher transexual, Crystal cansou de lutar por espaço para pessoas negras nos concursos de beleza para drag queens nos Estados Unidos dos anos 1960, divorciou-se dos mesmos e criou o seu próprio baile. De certa forma, Juru e Vitã estão fazendo o mesmo; não por revolucionar a arte de fazer documentários, mas por permitir que este que é seu, seja um espaço para sonhar — e o que define um sonho, um objetivo, é que ele ainda está por vir, ainda não está pronto, precisa de mais trabalho e transformação, é um devir. E por isso, é igualmente tocante que, por fim, o filme se entenda como um recorte muito específico no tempo e no espaço, pois é essa humildade que fecha as portas para uma apropriação idealista, e que por outro lado abre elas para novas… Alternativas.
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