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Foto do escritorLuiz Machado

[48ª Mostra SP] 'Enterre Seus Mortos' talvez tenha um coração grande demais

Esse texto é parte da cobertura que o Esqueletos no Armário está fazendo da 48º Mostra Internacional de Cinema de São Paulo como veículo credenciado, dando enfoque na programação que tenha cruzamentos com o cinema de gênero, as temáticas queer e de sexualidade.

Você já viu aquele tweet sobre alguém que só assistiu a O Poderoso Chefinho e, ao ver outros filmes, pensa: “fortes vibes de O Poderoso Chefinho”? Pois bem!


Nas últimas semanas, tenho feito uma maratona de Ed Wood. Havia uma beleza incomum em como o considerado “pior diretor de todos os tempos” conduzia suas histórias, seguindo seus instintos acima de tudo, no que Tim Burton descreveu como um “tipo de poesia redundante, daquela que o autor leva cinco frases para dizer algo que poderia ser expresso em apenas uma”, e que isso lhe dava “uma sensação surreal e estranhamente sincera”. Um emaranhado de ideias pode se tornar um filme? Me peguei pensando bastante em Ed Wood enquanto assistia a Enterre Seus Mortos, novo trabalho de Marco Dutra (As Boas Maneiras, Quando Eu Era Vivo, Trabalhar Cansa e algumas outras obras notáveis), e, honestamente, me peguei pensando: fortes vibes de Plano 9 do Espaço Sideral.


Em um futuro – é futuro? – Edgar Wilson (Selton Mello) recolhe animais mortos na beira da estrada. No interior, tudo é mato, terra e decepção. O mundo está acabando, o agro não é pop e o Brasil como conhecemos é apenas a lembrança de uma sessão de Titanic em 3D nos cinemas. Tudo o que parece ter restado são os cadáveres dos bichos e a vidinha do interior, dominada por um culto que aliena seus habitantes na promessa de uma vida longe daqui.



O livro original de Ana Paula Maia se torna apenas uma linha de descrição na odisseia que Dutra monta aqui. É um épico contido, mas ainda bastante megalomaníaco e, também, um filme B descarado. Ele fervilha de ideias, conceitos e elementos interessantíssimos que parecem se voltar contra o público a cada momento. Na saída da sessão, escutei uma moça resmungando “que perturbação” para seu acompanhante e, ao perguntar a colegas o que acharam do longa, a maioria das respostas foi: “preciso pensar, tem muita coisa”.


Entre diálogos malucos, um humor abrasivo e a construção de seu universo, Dutra me lembra Ed Wood na ideia de fazer seu projeto seguindo seus instintos acima de tudo. Não é nem um pouco comercial, não tem cara de streaming, tampouco é um horror de festival. O que ele atinge aqui é aquela sensação esquisita que só uma reportagem televisiva questionável sobre chupa-cabras em cidades pequenas parecem conseguir: Eu não sei se nada disso é real ou se isso sequer importa, mas há algo aqui que está me incomodando muito e talvez, só talvez, eu cheque as trancas da minha casa duas vezes antes de dormir.


Logo em sua cena de abertura, um Caetano Gotardo coberto de sangue fala que precisamos sair deste planeta; chuvas de pedras, saídas diretamente de Carrie, de Stephen King, caem sobre a cidade; carne não é mais uma opção de alimentação por conta de uma contaminação nunca explicada; Marjorie Estiano, usando a peruca mais bonita que você verá este ano, enlouquece ao ter uma visão lovecraftiana enquanto fala sem parar o quanto odeia crianças; Gilda Nomacce recita poesias esquisitas enquanto posa como um manequim; e Selton Mello torna quase todas as cenas de diálogo quase impossíveis de entender, de tão baixo que resmunga sobre um demônio chamado Gilson. É realmente uma perturbação que pode ou não ser deliciosa a cada segundo, dependendo do quão disposto você está a embarcar nela.



É quando o filme tenta dar um pouco de razão para seus mistérios que ele perde a força. Existe um momento deveras longo em que os personagens de Selton Mello e Danilo Grangheia, um padre viado que foi excomungado, passam a explicar a mitologia de um dos elementos sobrenaturais de maneira didática. A beleza do insólito se desmancha na tela, dando espaço a um elemento que não se amarra ao resto do trabalho, tirando a agência e a complexidade de Edgar Wilson em uma tangente frustrante que amarga o final e deixa seu epílogo incessantemente longo. Às vezes, é melhor deixar o mistério apenas ser.


Mas, entre trancos e barrancos, o resultado é completamente único. Vi muitas pessoas falando que o filme é perdido, mas, honestamente, acho que elas sabem exatamente o que estão fazendo aqui. É o tipo de experimentação que só alguém disposto a abraçar o gênero do horror em todos os seus absurdos e contradições consegue realizar. É quem faz o filme que quer, e você lide com isso. Pelo bem ou pelo mal, poucos estão dispostos a fazer o tipo de cinema que Dutra realiza no Brasil e, para todos os efeitos, Enterre Seus Mortos talvez tenha um coração grande demais.


 

ENTERRE SEUS MORTOS

2024 | Brasil | 128 min.

Direção: Marco Dutra

Roteiro: Marco Dutra & Ana Paula Maia

Elenco: Selton Mello, Danilo Grangheia, Marjorie Estiano, Betty Faria, Gilda Nomacce



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