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Foto do escritorLuiz Machado

[48ª Mostra SP] A Herança: terror queer brasileiro oferece bolo e bruxaria

Este texto é parte da cobertura que o Esqueletos no Armário está fazendo da 48º Mostra Internacional de Cinema de São Paulo como veículo credenciado, dando enfoque na programação que tenha cruzamentos com o cinema de gênero, as temáticas queer e de sexualidade.

O horror é o gênero cinematográfico que mais oferece espaço para as ideias absurdas, contraditórias e, em essência, ridículas. Desde os causos assustadores sobre lobisomens no campo que seu avô te contou quando era criança, até o horror gótico literário que moldou um imaginário coletivo tanto passado quanto presente, a beleza do gênero está em abraçar o macabro em suas peculiaridades, com a consciência de que, aquilo que pode assustar, pode causar exatamente o efeito contrário também. Como naquela cena icônica de Todo Mundo em Pânico 2 (2001), um esqueleto levantando do túmulo pode ser simultaneamente ameaçador e hilário — “são apenas ossos”.


É com essa compreensão genuína — embora difícil de executar — que João Cândido Zacharias estreia seu primeiro longa, A Herança (2024). Na exibição do filme na Cinemateca em São Paulo, durante a 48ª Mostra Internacional de Cinema, João agradeceu a presença do público e, bem humorado, disse: “é um filme de terror, mas está absolutamente permitido rir também”.



Depois de receber a notícia da morte de sua mãe, Thomas (Diego Montez) volta ao Brasil com o namorado Beni (Yohan Levy). Ao chegar, descobre que é o único herdeiro de uma avó misteriosa que nunca conheceu. Naquilo que o meme descreveria “mas que boa ideia”, o casal vai até o casarão antigo e isolado no interior, gerando a premissa básica de um bom filme sobrenatural. Lá, Thomas é recebido por duas tias (Cristina Pereira e Analu Prestes, brilhantes em seus papeis) que o tratam como se fosse um filho perdido. Enquanto o rapaz se encanta com o lugar em sua fantasia de Chico Bento, Beni para e pensa: acho que essas mulheres são bruxas…


Há um toque quase novelesco nas conversas de sala de estar, uma energia meio “cafezinho, Dona Helena?” entre as acolhedoras e, ao mesmo tempo, sufocantes interações familiares. Só quem foi o sobrinho viado sabe como o comportamento de tias transita entre fatias de bolo intermináveis e olhares levemente ameaçadores. Wes Craven (Pânico, A Hora do Pesadelo), que gostava de abordar os medos da cultura americana, disse certa vez que o horror mais profundo “é o que acontece ao nosso corpo pelas nossas próprias mãos e pelas mãos dos outros”. 


A doçura também é uma arma e, trazendo um casal queer como protagonista, João entende que a ameaça ganha novas conotações, bem como a forma passiva agressiva que se dá a opressão familiar — bastante sutil no filme, mas presente através de microagressões e correções de comportamento quase imperceptíveis (do tipo que escala para lugares ainda mais sombrios e violentos). A própria ideia de “herança”, tema central do filme, alude ao fato de que “dois iguais não se reproduzem”, suscitando a pergunta: quem assegura, então, a linhagem de sangue? A questão levantada por fundamentalistas religiosos descortina um buraco que fica um pouco mais embaixo aqui no filme: será que essa linhagem de sangue PRECISA ser assegurada? 


A reprodução é uma das obsessões fundadoras de uma sociedade heteronormativa que vê no sexo, antes do prazer, o objetivo da procriação. É daí que nasce o conceito nuclear de família e, junto com ele, seus adjacentes ditando sobre linhagens e heranças. Se nossos afetos não se estenderem por árvores genealógicas com ramos para todos os lados, somos encarados como ervas daninhas. E quem ousa discordar torna-se um vilão espantalho, algo que parece ter acontecido com a mãe de Thomas, que mesmo não estando fisicamente presente no filme, é uma personagem sentida ao longo da narrativa, pois nunca sai da boca de seus algozes — “Decepção” parece ser outra palavra amarrada à “herança” do título.


Atenção: leves spoilers nos próximos dois parágrafos.

Mas voltando um pouco ao sexo: temos um momento muito autêntico e romântico aqui. Acostumado com cenas entre personagens LGBTQIA+ em filmes acabarem antes do ato realmente iniciar, fiquei surpreso com o quão longa e atenciosa é aquela que João conduz no seu projeto. Temos a câmera virando para outro cômodo, como de praxe, mas ela mostra bastante antes, invertendo um pouco a lógica dessa linguagem clássica. Ao explorar os desejos e corpos de seus personagens e, principalmente, seu protagonista, João planta uma ideia bem clara neste momento, uma pulguinha que vai ficar atrás de sua orelha até picar — não há nada sendo produzido a partir daquele ato senão prazer.  


E quando um ritual se desenvolve mais tarde, a brutalidade da cena é amplificada por causa dessa comparação; ali João despe Thomas de seus desejos, reduzindo-o ao papel de “homem”, de macho ejaculador e apenas isso. Não vou além disso para não revelar muito, mas digamos que o temido “sexo gay” e seus objetivos não se encaixam naquela ideia, é preciso cometer uma violação — uma que Diego Montez vende com admirável entrega.  E mesmo que seja contra a ideia de encarar “cenas de sexo” apenas pelo seu utilitarismo em um roteiro, é curioso como o filme cria esse diálogo e justifica a existência desses dois momentos pela contraposição entre eles. 



Outra coisa que precisa ser ressaltada é a direção de arte de Elsa Romero — aliada ao trabalho de iluminação do diretor de fotografia Guilherme Tostes. Quem consome muitos filmes de terror atuais, já está acostumado com sentir a necessidade de usar uma lanterna para poder enxergar qualquer coisa. A arte da iluminação de cenas noturnas foi perdida há anos, ninguém mais tem coragem de abraçar a artificialidade de encarar a lua como um potencial refletor ou o drama que feixes de luz entrando por cortinas podem trazer para a composição de um plano. Bom, os olhos chegam a marejar de emoção aqui; que bonito, olha só... Contraste! Ao invés do breu opaco, João e Tostes criam um tom melancólico e inquieto nas noites do interior brasileiro, trazendo um ar de Suspiria (1977) ao calor tropical, misturando um filtro amarelado com noites azuladas. Nessa atmosfera, as assombrações dividem espaço com os pernilongos e aquele fio de suor enlouquecedor escorrendo pelas costas — e a mata atlântica, claro.


Como sugeriu o convite de João no início da sessão, A Herança se permite brincar com o pastelão das clássicas histórias de bruxaria. Em uma das minhas cenas favoritas, Gilda Nomacce, nossa grande musa do cinema de horror brasileiro, aparece com uma expressão comicamente perversa em uma pintura, já mostrando as inclinações ao cinema italiano setentista com que o projeto flerta. A criatura (sim, há uma), vem a aparecer somente na segunda porção, momento no qual surge como uma mistura muito curiosa de uma criação de José Mojica Marins com toques do mais melodramático Mario Bava. É tudo uma grande brincadeira cartunesca que me tirou um sorriso de orelha a orelha. Me lembrou Scooby-Doo na Ilha dos Zumbis (1998) — um elogio, vindo deste lado.


Contudo, sinto que falta uma catarse final ao desfecho, que soa seguro frente ao potencial do surto que, no resto da narrativa, é muito bem arquitetado. Um pouco rápido demais, esse final acaba puxando o tapete de quem se encantou com as cartas usadas para construir o castelo — queria que ele tivesse explodido, ao invés de desmoronar com um sopro. Senti que esses minutos finais imploraram por mais gore, gritaria e, principalmente, olhos esbugalhados enfeitando o rosto de final boys cobertos de alguma gosma espectral de cor duvidosa. Ainda assim, A Herança é uma adição honesta ao cinema de horror brasileiro, e João Cândido Zacharias um talento promissor para o gênero. Seu filme respeita e se diverte com as contradições e tosquices deste nicho do cinema fantástico, se apresentando como uma estreia segura de longa-metragem, além de cuidadosamente concebido e surpreendentemente carinhoso. A famosa “cartinha de amor”, aqui na forma de um queridíssimo horror queer tropical.


OBS: O filme terá sua estreia oficial nos cinemas no dia 21 de novembro.
 

A HERANÇA

2024 | Brasil | 80 min.

Direção: João Cândido Zacharias

Roteiro: João Cândido Zacharias e Fernando Toste

Elenco: Diego Montez, Yohan Levy, Analu Prestes, Cristina Pereira, Luiza Kosovski, Ana Carbatti, Gilda Nomacce e Jimmy London.

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