[48ª Mostra SP] 'Maria', por que te Callas?
Atualizado: há 4 dias
Esse texto é parte da cobertura que o Esqueletos no Armário está fazendo da 48º Mostra Internacional de Cinema de São Paulo como veículo credenciado, dando enfoque na programação que tenha cruzamentos com o cinema de gênero, as temáticas queers e de sexualidade. Maria Callas, do cineasta chileno Pablo Larraín, que concorreu ao Leão de Ouro no Festival de Veneza em 2024, foi o filme selecionado para ser exibido na cerimônia de abertura só para convidados da Mostra esse ano. Por falar sobre Maria Callas, um dos nomes mais icônicos da ópera mundial e talvez a primeira diva pop, além de amiga pessoal do homossexual Pier Paolo Pasolini (com quem fez seu único filme, Medéia) e do realizador Luchino Visconti (de Morte em Veneza, Os Deuses Malditos, Violência e Paixão e outros títulos com fortíssimo viés queer), decidimos escrever sobre o loga-metragem em nossa cobertura. Segue:
É a terceira vez em menos de 10 anos que o cineasta chileno Pablo Larraín propõe uma cinebiografia intimista de uma mulher marcante da história recente a partir de um recorte muito específico (e trágico) de sua vida. Em Jackie (2016), conhecíamos Jacqueline Kennedy (Natalie Portman, indicada ao Oscar) a partir do famoso assassinato de seu marido e presidente dos Estados Unidos John F. Kennedy. Em Spencer (2021), o foco foi a Princesa Diana (Kristen Stewart, indicada ao Oscar) e o final de semana natalino em que decidiu se divorciar de Charles. Pois Maria (2024 — o título original segue o padrão com apenas um nome) começa com a morte anunciada e solitária da aclamada soprano Maria Callas (Angelina Jolie, que provavelmente também será indicada ao Oscar) no seu apartamento em Paris, no ano de 1977. A partir daí, a narrativa volta e retoma a última semana da antiga estrela dos palcos, agora afastada dos holofotes, sofrendo com alucinações e lidando com a ameaça de ter perdido sua voz para sempre, uma revelação dolorosa que traz à tona memórias íntimas de sua trajetória, impactando ainda mais a saúde física e mental de Maria, amparada unicamente pela servidão e devoção de sua governanta Bruna (Alba Rohrwacher) e de seu mordomo Ferruccio (Pierfrancesco Favino).
Repetir a mesma estratégia com três mulheres tão diferentes (e famosas por motivos tão diferentes), acabou evitando que esses filmes se repetissem. Sim, todos eles enfatizam a melancolia e a solidão de mulheres definidas e esmagadas pelos papéis a que foram designadas, mas cada um acaba evidenciando um aspecto diverso (e, portanto, a pluralidade) da opressão que sofrem. Jackie não tem permissão para processar seu trauma e muito menos seu luto, frente ao evento político e midiático em torno da morte do homem mais importante do mundo naquele momento. Diana, presa em uma mansão mal assombrada vigiada por espectros e pelas maquinações da família real, precisa encontrar um antídoto para sua maldição. E agora Maria, feita insegura de tão moldada para agradar aos homens, se queda por fim quebrada após ter sido deixada por um. “90% da sua devoção é pela comida, só um pequeno pedaço é amor”, diz ela aos cães de estimação na primeira vez que aparece em tela. É um dos muitos momentos em que o roteirista Steven Knight (que também assinou o texto de Spencer) vai se aventurar em sínteses das questões enfrentadas pela protagonista; a adoração e a repulsa do público, as difamações na imprensa, o limiar entre a artista, a performer e a pessoa humana por trás da voz. Um esforço quase poético que contrasta e empobrece diálogos mais mundanos, mas que engrandece a narrativa quando orna com a abordagem lúdica de Larraín, paramentada de quadros estáticos com disposições bastante pousadas e iluminação calculada.
Larraín está, afinal, lidando com um mito. É a sua versão desse mito, nos seus traços e termos, mas ainda assim um mito, algo que ele mesmo reconhece ao investir numa montagem inicial ao som de Ave Maria (talvez a canção mais popularizada na voz de Maria Callas?) que reconstitui passagens e imagens icônicas na vida de Callas, como o ensaio fotográfico realizado pelo britânico Cecil Beaton. Ou, também, através de uma entrevista fictícia logo nas primeiras cenas que nada mais é do que um amálgama de conhecidas falas públicas da cantora de ópera — basta conferir e comparar, por exemplo, com as entrevistas que Maria deu a Bernard Gavoty em 1964, ou à Barbara Walters em 1974. Foram nelas, aliás, que Callas reafirmou sua divisão interna entre a Maria, a mulher, a pessoa, e Las Callas, como passou a chamar sua personalidade de diva. Uma mais tímida, constrangida e resguardada; a outra enérgica, temperamental e assertiva (volta e meia cortando as perguntas dos jornalistas por já conseguir adiantar onde eles queriam chegar com elas).
É nessa transição, aliás, que Angelina Jolie peca em demasia — também não comprei muito as dublagens das canções, que embora estejam labialmente sincronizadas, parecem carregar energia muito diferente daquela trazida pela voz que deveríamos crer estar saindo da garganta de Jolie. A modulação da atriz é frágil, falhando em passar de “Maria” para “Las Callas” com naturalidade. Na verdade, pouco ou nada se vê de “Maria”, e muito de “Las Callas”, até quando não faz sentido que ela assuma a personalidade de diva. Por outro lado, a Las Callas de Angelina é, de fato, fascinante de assistir, com toda sua acidez e austeridade autodestrutiva. E o filme é fantasmagórico o suficiente para que se aceitem certas liberdades poéticas, como as constantes punições que Maria infringe à Bruna e a Ferruccio quando se metem demais na sua vida; ou toda a cena em que Maria se expõe num café para atrair atenção. Inclusive, é quando engata mais nesse clima de pesadelo acordado (ou sonho inquietante) que Maria Callas, o filme, harmoniza melhor sua canção. Antes fosse ele todo assim nesse tom onírico com pinceladas de gótico — o momento que o dono de um estabelecimento recusa-se a parar de tocar os discos de Callas é, exatamente por isso, um dos meus favoritos do longa.
Além disso, é de admirar a escolha por retratar uma figura tão emblemática do mundo da ópera sem, com isso, focar ou contar sua trajetória justamente no mundo da ópera. Sim, podemos ver relances e alguns trechos de Callas encenando no passado, mas estes sempre são apresentados com distorções de lente ou de cor, como fantasmas que aparecem para puxar seu pé. Enquanto isso no presente, a ópera aparece na forma de alucinação, um puro delírio de autopiedade que ajuda a compor a soberba e o orgulho ferido da personagem, que ainda por cima imagina a si mesma sendo entrevistada por um twink para um documentário imaginário pelas ruas de Paris — um truque de roteiro para abusar de explanações, claro, mas não por isso um recurso menos eficiente na envernização fantasiosa que Larraín aplica sobre o filme. Ele chega a vender tão bem esses elementos alucinatórios que, numa cena específica, cultivei esperanças reais de ver em tela, junto com Angelina Jolie, Natalie Portman como Jacqueline Kennedy Onassis (e Kristen Stewart, como Ana Bolena — e digo mais: Ana de Armas como Marilyn Monroe! Certamente seria um crossover mais impactante do que qualquer um desses que a Marvel anda fazendo).
Tentando (novamente) criar um pequeno conto universal de horror a partir de uma figura tão particular, Pablo Larraín acaba alienando demais um espectador desavisado que pouco já ouviu de Callas que não sejam suas gravações de Carmen ou sua avassaladora performance em Tosca, de Puccini. Contudo, é uma boa pregação para convertidos, já que os familiarizados com a biografia da artista poderão preencher as lacunas não exploradas pelo longa-metragem e enxergar um colorido diferente. Além disso, o filme poderia ter terminado cerca de cinco minutos antes, quando cria a catarse perfeita para se encerrar — como esse texto, que atingiu seu ápice cerca de cinco linhas atrás na citação a Puccini.
MARIA
2024 | Tália, Alemanha, Chile | 124 min.
Direção: Pablo Larraín
Roteiro: Steven Knight
Elenco: Angelina Jolie, Kodi Smit-McPhee, Valeria Golino, Alba Rohrwacher, Haluk Bilginer, Pierfrancesco Favino, Aggelina Papadopoulou